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interview ISSN 2175-6708

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Os editores Augusto Massi, Julia Bussius e Abilio Guerra entrevistam o literato brasileiro Milton Hatoum, programa em vídeo.

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GUERRA, Abilio; MASSI, Augusto; BUSSIUS, Julia. Milton Hatoum: literatura em tempos de cólera política e pandemia de coronavírus. Transa Marieta – episódio 1. Entrevista, São Paulo, ano 21, n. 082.02, Vitruvius, abr. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.082/7713>.


Epígrafe, com leitura por Milton Hatoum:

Mundo não participava dos torneios, nem praticava os demais esportes; fora dispensado graças a um atestado médico arranjado por Alicia; mas tinha que ficar na quadra e responder à chamada nas aulas de educação física. Ela ainda apareceu duas ou três vezes com o filho: chegavam abraçados, no portão se despediam com beijos e afagos; ele subia a escada virando o rosto para a mãe, e a cada degrau seu sofrimento parecia aumentar. Ela ia embora antes que ele entrasse; andava com pressa até o carro, enquanto Mundo a seguia com os olhos, esperando um aceno. Aos treze anos já era mais alto que Alícia, de quem herdara o rosto anguloso e os olhos grandes e escuros, meio repuxados, “de alguma tribo esquecida”, como ele próprio escreveu anos depois. Quando chovia, os veteranos o cercavam no saguão: “Tua mãe não veio? Molhada é ainda mais bonita”, e ele, com o rosto crispado, mordia os lábios e devolvia com um olhar desafiador os gracejos idiotas. E logo percebemos que seu poder, além de emanar das mãos, vinha também do olhar.
[Cinzas do Norte, p. 12]

Abilio Guerra (AG): Infância e juventude em Manaus, no seio de uma família de origem libanesa-árabe.

Augusto Massi (AM): A presença da poesia nos primeiros textos.

Julia Bussius (JB): Você aprendeu ser escritor ou se descobriu escritor? De que necessita um escritor?

 

Epígrafe, com leitura por Milton Hatoum:

“Se algo havia de análogo entre Manaus e Trípoli, não era exatamente a vida portuária, a profusão de feiras e mercados, o grito dos mascates e peixeiros, ou a tez morena das pessoas; na verdade, as diferenças, mais que as semelhanças, saltavam aos olhos dos que aqui desembarcavam, mesmo porque mudar de porto quase sempre pressupõe uma mudança na vida: a paisagem oceânica, as montanhas cobertas de neve, o sal marítimo, outros templos, e sobretudo o nome de Deus evocado em outro idioma. Mas uma analogia reinava sobre todas as diferenças: em Manaus como em Trípoli não era o relógio que impulsionava os primeiros movimentos do dia nem determinava o seu fim: a claridade solar, o canto dos pássaros, o vozerio das pessoas que penetrava no recinto mais afastado da rua, tudo isso inaugurava o dia; o silêncio anunciava a noite”.
[Relato de um certo Oriente, p. 28]

AM: A presença de cidades, casas e ruínas / margens da narrativa, memórias flutuantes.

AG: A presença de artefatos, barcos, móveis e objetos / o universo a princípio inanimado.

AM: Erotismo: desejo, culinária, pintura, perdição.

AG: Imigrantes e migrantes.

AG: Ausência e mácula – Freud e o trauma / o acaso – Deus ex-maquina?

 

Epígrafe, com leitura por Milton Hatoum:

Os dois saíam cedo para o colégio; quem, de longe, os olhasse caminhar, juntos, vestindo a farda engomada por Domingas, teria a impressão de ver os dois irmãos conciliados para sempre. Yaqub, que perdera alguns anos de escola no Líbano, era um varapau numa sala de baixotes. Zana temia que ele mijasse no pátio do colégio, comesse com as mãos no refeitório ou matasse um cabrito e o trouxesse para casa. Nada disso aconteceu. Era um tímido, e talvez por isso passasse por covarde. Tinha vergonha de falar, trocava o pê pelo bê (Não bosso, babai! Buxa vida!), e era alvo de chacota dos colegas e de certos mestres que o tinham como um rapaz rude, esquisito, vaso mal moldado. Mas era também alvo de olhares femininos. E olhar Yaqub sabia. De frente, como um destemido, arqueando a sobrancelha esquerda, um tímido que podia passar por conquistador. Sorria e dava uma risada gostosa no momento certo, o momento em que as meninas das praças, dos bailes e dos arraiais suspiravam. Na casa, Zana foi a primeira a notar esse pendor do filho para o galanteio. Domingas também se deixava encantar por aquele olhar. Dizia, "Esse gêmeo tem olhão de boto; se deixar, ele leva todo mundo para o fundo do rio".
[Dois irmãos, p. 24]

O outro, o Caçula, exagerava as audácias juvenis, gazeava lições de latim, subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para a noite, fardado, transgressor dos pés ao gogó, rondando os salões da Maloca dos Barés, do Acapulco, do Cheik Clube, do Shangri-Lá. De madrugada, na hora do último sereno, voltava para casa. E lá estava Zana, impávida na rede vermelha, no rosto a serenidade fingida, no fundo atormentada, entristecida por passar mais uma noite sem o filho. Omar mal percebia o vulto arqueado sob o alpendre. Ia direto ao banheiro, provocava em golfadas a bebedeira da noite, cambaleava ao tentar subir a escada; às vezes caía, inteiro, o corpanzil suado, esquecido da alquimia da noite. Então ela saía da rede, arrastava o corpo do filho até o alpendre e acordava Domingas: as duas o desnudavam, passavam-lhe álcool no corpo e o acomodavam na rede. Omar dormia até meio-dia. O rosto inchado, engelhado pela ressaca, rosnava pedindo água gelada, e lá ia Domingas com a bilha: derramava-lhe na boca aberta o líquido que ele primeiro bochechava e depois sorvia como uma onça sedenta. Halim se incomodava coem isso, detestava sentir o cheiro do filho, que empestava o lugar sagrado das refeições. O pai rondava a sala, caminhava em diagonal, o olhar de relance na rede vermelha sob o alpendre.
[Dois irmãos, p. 26]

AM: A estrutura familiar determina a forma romanesca.

AG: Memória e tempo / Palácio da Memória de Santo Agostinho.

AM: O narrador e os gêneros: crônica, conto, romance.

AG: Linguagem, línguas, tradução.

JB: Maturação – ideia original e desenvolvimento / trilogia “O lugar mais sombrio”.

AG: Contrabando das informações: o velado, o insinuado, o desvelado.

AG: Método de pesquisa.

 

Epígrafe, com leitura por Milton Hatoum:

Ela já conhecia aquele lugar deserto, conhecia o riacho de águas esverdeadas, perto de uma casa destelhada. Uma palmeira retorcida crescia na sala, calangos corriam entre as pernas de duas cadeiras velhas e no tampo de uma mesa emborcada. Num cartaz pregado num tabique, ainda era possível ler "Brasil: Ame-o ou Deixe-o" acima da fotografia colorida e meio apagada do busto do general Médici; as cores da bandeira brasileira na faixa presidencial haviam sumido, e no rosto militar apenas a boca entortada e as sobrancelhas espessas apareciam no papel sujo. Perto da casa, uma rocha escurecida de musgo lembrava um sapo-gigante; mais longe, na direção de Formosa, dois morros pareciam cabeças sem corpo emergindo do cerrado.

Comemos azeitonas doces, pequis, e jambos-amarelos com gosto de flor do mato. “Você foi o meu primeiro namorado virgem, mal sabia dar um beijo, Martim. No dia da nossa separação vou me lembrar dessa manhã.”

Quando ela percebeu o sofrimento no meu olhar, disse que eu não devia procurar a tristeza. Ninguém deveria.

“’A tristeza, mesmo contínua, tem cura...' Por que não acredita nesses versos que traduziu para mim?”

Seguia com o olhar o vulto do corpo imerso no riacho, perdia e encontrava uma sombra que se movia debaixo de folhas, o corpo nu emergia e agitava a água, o vento soprava palavras inaudíveis, talvez palavras de amor.

E agora esse "amor parece tão distante de mim, e tão estranho, como se quase pudesse ouvi-lo: um zumbido ou choro, longe, bem longe, um triste som perdido, e eu não sei dizer se esse amor está se aproximando ou se afastando...".

[Pontos de fuga, p. 248-249 – Trilogia “O lugar mais sombrio”, volume 2]

JB: Leituras antigos e atuais.

AG: Crítica literária: Leyla Perrone-Moisés, Davi Arrigucci Jr., Alfredo Bosi e Benedito Nunes.

AM: Escritor referência: Raduan Nassar

AM: Edward Said (tradução de Representações do intelectual [1933], publicada em 2005)

 

Epígrafe, com leitura por Milton Hatoum:

Sábado, 9 de dezembro, 1972

Uma cerca baixa de madeira contorna o jardinzinho do barraco caiado, Luiz Gonzaga canta um baião, a voz do rádio vem de um barraco vizinho e se mistura com as vozes de crianças e de um soldado no bate-bola na terra quente. Uma carroça com botijões de gás parou no outro lado do córrego, o carroceiro atravessou a pequena ponte de tábuas e tocou uma buzina de borracha, mas a mãe de Lázaro não apareceu. Quase uma da tarde: o sol seca o córrego, uma palmeira desfolhada parece um mastro abandonado, fincado no solo crestado. No ônibus para o Plano Piloto, o soldado sentou ao meu lado; segurava uma sacola de plástico cheia de mangabas e olhava pela janela as superquadras ajardinadas, limpas e espaçosas da Asa Sul. Desci na altura da 107, o soldado raso seguiu para a rodoviária: comeria um pastel, tomaria um copo de caldo de cana, depois entraria na fila da bilheteria, conversaria com soldados do Exército e da Aeronáutica, passariam o fim de semana com a família em alguma cidade de Goiás, Minas, do DF, ou no subúrbio de Goiânia.
[A noite da espera, p. 213-214 – Trilogia “O lugar mais sombrio”, volume 1]

JB: Literatura e atualidade socioeconômica, política e cultural / Mariana Enriquez: “por que tenho que ser intérprete desse momento”? A política, a história, como entram na sua ficção?

JB: ficção (trilogia no período da ditadura militar) e realidade atual (retrocesso político, ideológico e comportamental).

AM: Como “O lugar mais sombrio” dialoga com outras narrativas em torno da ditadura militar: de Reflexos do baile [1967], de Antonio Callado, até K. [2011], do Bernardo Kucinski?

AG: Crônica: atuação na imprensa e nas redes sociais.

JB: “O lugar mais sombrio” como romance de formação.

 

Epígrafe, com leitura por Milton Hatoum:

“Hoje sonhei que saía do meu corpo. Eu com a minha consciência... Era um homem invisível, ninguém me viu nos corredores e salas do Itamaraty. Escutei o que falavam... e sabe o que falavam? Que eu deveria ser um escriba, ou nem isso: um revisor de telegramas, cartas, relatórios. Nenhum documento confidencial, porque não confiam em mim. Vi inimigos ferrenhos, vi falsos amigos que me invejam porque chefiei uma difícil missão de paz na África e fui bem-sucedido, fiz contatos com presidentes de câmaras de comércio europeias e trouxe divisas para o meu país, divulguei nossa cultura e organizei uma mostra do Cinema Novo em Paris. Vários artigos na imprensa francesa... Le Monde, Cahiers du Cinéma, Figaro, Nouvel Observateur... Não foi apenas um succès d'estime, foi também um sucesso de público. Eu mesmo escrevi um artigo sobre a recepção do Cinema Novo na França. Mas não é só por isso que sou perseguido em sonhos e na minha insônia. Não me curvo a todas as orientações do Itamaraty, não bajulo esse Médici nem os ministros dele. Esses militares e civis são espectros sombrios da nossa velha tragicomédia. Foi isso que murmurou minha consciência quando eu contemplava as carpas no espelho d'água do Palácio dos Arcos. Os peixes vão morrer no espelho seco, nós todos vamos morrer com sede de liberdade. Quando amanheceu, eu e a minha consciência saímos do Palácio e voltamos ao meu corpo, este corpo seco nesta cidade em que tudo é seco: o clima, a cultura, a vida. Você se lembra dos versos que a gente traduziu outro dia? É preciso usar a razão na tempestade, jovem. Resistir com a força da razão, ver o mundo como uma coisa da mente, escutar os gritos de um pássaro e descobrir uma nova realidade. Eu e a minha consciência... Você, o peixe, cada ser com a sua consciência. A água podre, estagnada, não pode calar a cachoeira. Será que você me entende?"
[A noite da espera, p. 204 – Trilogia “O lugar mais sombrio”, volume 1] 

JB: Importância da música nas histórias.

AG: Arquitetura e estrutura narrativa.

AM: Transporte da literatura para o cinema: Órfãos do eldorado (2008), filme de Guilherme Coelho (2015); Relato de um certo Oriente (1989), filme em andamento de Marcelo Gomes (roteiro em coautoria com Maria Camargo). Conto do livro A cidade ilhada em adaptação por Sérgio Machado.

AM: Transporte da literatura para a história em quadrinhos e série de TV: Dois irmãos (2000) recriado em HQ pelos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, e adaptado por Luiz Fernando Carvalho para série da Globo (2017, roteiro em coautoria com Maria Camargo).

AM: Design gráfico: capas dos livros ao longo do tempo.

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