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my city ISSN 1982-9922

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BIERRENBACH, Ana Carolina. Lina Bo Bardi e o Mausoléu da Família Odebrecht, entre o etéreo e o terreno. Minha Cidade, São Paulo, ano 05, n. 058.02, Vitruvius, maio 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/05.058/1977>.



“Vistas desde la altura de la infancia (...) en la que jugar es una obligación, las reglas que todo lo determinaban parecían existir desde tiempos inmemoriales, y si uno se aventuraba a hacer notar que alguien había tomado a su cargo inventarlas, ¡atención, niño subversivo! (...) Reglas inamovibles y nadie sabía por qué. Había que buscar circunstancias realmente excepcionales (o jugar solo) para poder modificarlas, (...) y cambiar el mundo...”
Julio Cortázar (1)

A passagem de Lina Bo Bardi por Salvador entre 1958 e 1964 deixou vários rastros. Alguns deles são bastante notórios, outros nem tanto. São conhecidas as obras que realiza na cidade durante essa etapa, como a Casa do Chame-Chame (1958) ou o restauro do Solar do Unhão (1959-1963). Lina Bo Bardi também é responsável por instalar, no conjunto arquitetônico do Unhão, o Museu de Arte Popular, e nas dependências do Teatro Castro Alves, o Museu de Arte Moderna da Bahia. Mas existe em Salvador uma obra sua não muito conhecida: o Mausoléu da Família Odebrecht (1963-1964).

Lina Bo Bardi conhece Norberto Odebrecht devido às atividades que ambos realizam no Teatro Castro Alves. Enquanto a arquiteta se encarrega da direção do Museu de Arte da Bahia, situado no foyer do Teatro, a construtora do engenheiro assume as obras de recuperação do seu corpo principal, destruído por um incêndio, em julho de 1958. É nessas circunstâncias que coincidem Lina Bo Bardi e Norberto Odebrecht.

Segundo depoimento de Norberto Odebrecht, Lina Bo Bardi toma conhecimento da construção do Mausoléu durante uma viagem que realiza à Ilha de Kieppe, no sul da Bahia, de propriedade da família Odebrecht. A arquiteta se prontifica em colaborar no projeto e na execução da obra, enquanto o engenheiro se responsabiliza pela realização de sua estrutura. Lina Bo Bardi concebe o projeto, mas não chega a acompanhar sua construção, já que abandona Salvador no ano de 1964. De acordo com Norberto Odebrecht, o motivo que a leva a deixar a cidade é um desentendimento com o Governo Baiano sobre como dirigir o Museu instalado no Teatro Castro Alves. Certamente sua saída de Salvador se vincula à mudança das perspectivas governamentais baianas, devidas ao Golpe Militar de 1964.

A família Odebrecht compra um lote que mede 3,4 X 5m no Cemitério do Campo Santo, em Salvador, no ano de 1953. Inicialmente os jazigos são instalados em uma caixa baixa. A intervenção de Lina Bo Bardi ocorre aproximadamente dez anos depois e parte dessa base preliminar. Nos arquivos do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi não há muitas informações gráficas sobre a proposta da arquiteta. Não existem croquis, mas sim o projeto executivo do Mausoléu. A partir dos documentos encontrados no Instituto, das informações obtidas com Norberto Odebrecht, e das fotografias recentes do Mausoléu, seguiremos o processo criativo levado a cabo por Lina Bo Bardi e indagaremos que relações estabelece com o mundo.

A atuação de Lina Bo Bardi transforma a caixa baixa em um caixote alto. Inicialmente o Mausoléu conta com um único andar no qual estão situados os carneiros com os restos mortais dos membros da família Odebrecht. A arquiteta acrescenta um segundo andar e um terraço ajardinado.

Dentro do caixote, a intervenção de Lina Bo Bardi integra os dois pavimentos com uma escada em dois lances. O subsolo não passa por modificações significativas. A atuação da arquiteta concentra-se sobretudo no térreo. Nos desenhos, nota-se a predominância das linhas retas e dos planos que compõem o volume interno do caixote. As urnas funerárias situam-se à direita da porta de acesso e formam um grande mosaico de quadrados. A mesma figura geométrica é usada para criar pequenas aberturas para as entradas de ar e luz localizadas em uma das paredes do Mausoléu. Uma seção mostra a impactante presença da escada externa no interior do caixote. Entretanto, Lina Bo Bardi não participa da execução da obra. Indica o artista plástico Carybé e o Irmão Paulo, do Mosteiro de São Bento de Salvador, para acompanhá-la. O projeto mantém sua austeridade, mas passa por transformações significativas. A escada que une os dois pavimentos é a mesma e realiza-se com concreto aparente, com aspecto tosco. Um parapeito de madeira protege a escada. No pavimento térreo não se executam os carneiros, mas sim ossuários. Cria-se um pequeno espaço para a realização de missas. A escada externa evidencia-se internamente através de alguns degraus que aparecem dentro do caixote. A escada apoia-se em um arco de tijolos aparentes, que também é utilizado em outra face do caixote. As paredes internas são pintadas de branco e recebem algumas imagens bíblicas, pintadas por Carybé.

Fora do caixote também ocorrem permanências e transformações no decorrer do processo criativo. Nos desenhos observa-se a prevalência de um elemento geométrico com linhas retas e contorno definido. As quatro faces do caixote são diferentes. Na elevação sul está situada a porta principal; na elevação leste está localizada a escada com uma largura de 60cm; na elevação norte aparecem as pequenas aberturas quadrangulares distribuídas aleatoriamente; a elevação oeste é simplesmente um plano retangular. Mas um detalhe do desenho quase passa desapercebido: a anexação de plantas às quatro paredes do caixote. Entretanto, os desenhos omitem várias características relevantes do projeto. Segundo depoimento de Norberto Odebrecht, Lina Bo Bardi pretende apicuar as paredes externas e enxertar nelas os elementos de trabalho usados pelos profissionais que executem a obra. Assim, sua intenção é que pedreiros e carpinteiros insiram nos muros suas espátulas, seus prumos e tantos outros utensílios de trabalho por eles utilizados. A arquiteta também aspira plantar no terraço Buganvílias (Primaveras), para que os ramos caiam até o chão, cobrindo parcialmente as paredes do caixote. Entretanto, nem todas essas idéias vingam. Lina Bo Bardi não acompanha a obra e os enxertos com os instrumentos de trabalho não chegam a ocorrer, mas as Buganvílias são realmente plantadas do terraço-jardim do Mausoléu. Em decorrência da escassez de água e da dificuldade de manutenção, as Buganvílias são descartadas e em seu lugar Norberto Odebrecht decide plantas as heras que cobrem o caixote na atualidade. Lina Bo Bardi também encarrega Carybé e o Irmão Paulo de realizarem os detalhes artísticos externos. A porta e o letreiro com o nome da família Odebrecht são de autoria do religioso. As heras sobrepõem-se ao volume geométrico, que perde a definição do seu contorno. As quatro faces permanecem praticamente iguais, mas substancialmente diferentes...

Apesar das poucas informações existentes sobre o Mausoléu da Família Odebrecht, é possível observar como Lina Bo Bardi enfrenta o projeto. E o faz de modo ao mesmo tempo firme e vacilante. As diretrizes do projeto são lançadas nos desenhos e se prolongam ao longo do processo. E essas diretrizes baseiam-se em uma tensão fundamental que possibilita que ocorram permanências e transformações durante o procedimento projetivo. Podemos dizer que na figura de Lina Bo Bardi estão concentrados dois jogadores dispostos a intervir ao mesmo tempo. Ambos participam do jogo com iguais possibilidades de atuar. Por um lado, encontramos um participante cujos movimentos são mais decididos, que se concentra em dotar o projeto de uma ordem básica. É esse jogador que insiste em conceber um bloco geométrico puro e coeso, cujas linhas, planos e volumes sejam enfatizados, tanto interna como externamente. Por outro lado, os gestos do outro participante não são tão determinados. Sua trajetória é marcada por movimentos titubeantes, que vão pouco a pouco incorporando elementos que estremecem a ordem vigente. Sua atuação perturba a consistência externa do Mausoléu, primeiramente através do enxerto de plantas variadas às suas paredes, em seguida por meio da incrustação de objetos, cobertos parcialmente com buganvílias. Não há indícios da sua posterior intervenção dentro do Mausoléu. Mas pela sua participação fora, pode-se intuir que não desaprove as atuações de Carybé e do Irmão Paulo.

A estratégia utilizada por Lina Bo Bardi possibilita que esses dois jogadores atuem tanto conjunta como separadamente, sem que se estabeleça um conflito entre ambos. Um jogador procura manter o projeto sob seu controle, buscando garantir o resultado final. O outro jogador tem uma conduta mais flexível, experimenta soluções possíveis ao longo do processo, que perturbam e descontrolam as ações do outro integrante. Está mais interessado em provar alternativas que procurar garantir um resultado determinado. As permanências e transformações que ocorrem no processo criativo do Mausoléu se dão sobretudo devido a esse embate, com os dois jogadores atuando simultaneamente. Mas ambos têm que abandonar o jogo antes do seu desenlace...

Embora Lina Bo Bardi não termine o projeto, seu resultado acaba consolidando os lances de ambos os jogadores. Concebe-se uma arquitetura ambivalente, que se baseia em uma idéia de autonomia, mas também de heteronomia. O jogador que segue estritamente pautas geométricas produz uma arquitetura racionalizada, que se retrai sobre si mesma e se separa do mundo exterior. O outro jogador não está interessado em seguir regras, mas sim seus impulsos. Concebe uma arquitetura que se acopla ao mundo, sucumbindo às suas pulsações vitais.

Uma arquitetura etérea dedicada aos mortos, de aspecto protegido e inviolável, que através da geometria oferece um marco de equilíbrio e permanência diante da insensatez e da instabilidade da passagem humana pela terra; mas também uma arquitetura dedicada aos vivos, afastada das suas dimensões idealizadas e situada nas contingências terrenas. Ao aspecto resguardado, contrapõe-se sua característica indefensa e vulnerável, que aceita a efêmera e frágil existência do homem e do mundo que nos abriga. Mas que, apesar de tamanha efemeridade e fragilidade, não sucumbe e afirma nas suas entranhas a capacidade humana de atuação e de transformação diante do mundo.

Lina Bo Bardi realiza uma arquitetura que é uma homenagem a esta família de engenheiros e construtores e a todos aqueles que os acompanham no seu labor. Nesse memorial dedicado aos mortos e aos vivos da família, sintetiza-se sua contribuição terrena, que vincula a permanente tentativa humana de controlar a matéria e sua eterna incapacidade de dominá-la plenamente... Uma busca que se realiza a partir do esforço, da dedicação e também da satisfação dos homens com o seu trabalho, que é documentado e valorizado na materialidade do Mausoléu da Família Odebrecht.

Essa pequena experiência arquitetônica é um grito poético. Condensa através da arquitetura o mundo, e o reapresenta para os homens. E apesar de pequena e discreta, diz muito sobre as outras arquiteturas de Lina Bo Bardi. Nos seus projetos construídos ou não construídos podemos sempre encontrar em maior ou menor medida a figura desses dois jogadores, um disposto a preservar umas pautas elementares e o outro interessado em estremecê-las. Entretanto, no decorrer das jogadas, esses dois jogadores vão perdendo sua definição e, no meio das partidas, misturam seus lances, confundem-se e, ao final, não se sabe muito bem qual é um, qual é outro... E assim vão sendo concebidas as arquiteturas de Lina Bo Bardi, que entre o etéreo e o terreno acolhem os homens e nos situam no mundo em que vivemos... e que morremos (2).

Notas

1
DUNLOP, Carol; CORTÁZAR, Julio. Los autonautas de la cosmopista – un viaje atemporal París-Marsella. Madri, Alfaguara, 1996, p. 67.

2
Os dados sobre o Mausoléu da Família Odebrecht foram gentilmente concedidos pelo Sr. Norberto Odebrecht, que também forneceu várias fotografias do local. Agradeço a sua colaboração, e também a da Sra. Hebe Meyer, pela sua ajuda para a obtenção desses dados.

sobre o autor

Ana Carolina de Souza Bierrenbach, arquiteta, Mestre pela Universidade Federal da Bahia e doutoranda na ETSAB-Universdidade Politécnica da Catalunha.

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