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my city ISSN 1982-9922

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AMORIM, Luiz. O Recife e o muro de Babel. Minha Cidade, São Paulo, ano 06, n. 065.04, Vitruvius, dez. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/06.065/1956>.


Rompe a Avenida Guararapes e rasga o Bairro do Recife


Não é que o homem ao telefone tinha razão?

Não é que o homem ao telefone tinha razão?

Pela Avenida Marques de Olinda...

O Barão não sabe se o zero do marco está sob ou para além do muro, e o monumento falóide pende ao pé do muro

Do lado norte

Ao longe, a massa fantástica serpenteando na planície do Capibaribe

 

A DIRCON – Diretoria de Controle Urbano da Prefeitura do Recife ergueu, sem que ninguém percebesse, um muro que dividiu a cidade em duas. Um muro intransponível, que deixou cidadãos incomunicáveis, famílias separadas, amantes isolados, administradores desesperados. Uma construção rápida, como nenhuma jamais vista. Uma construção eficiente, sem metralha ou barulho que perturbasse os infelizes moradores desta capital do ruído. Uma obra de deixar arquitetos e engenheiros abismados.

Esta obra de grandeza ímpar foi erguida pela voz solene de um funcionário daquela diretoria que, ao telefone, replicou, depois das 10 horas da noite, a solicitação desesperada de um cidadão esgotado pela falta de controle de ruído urbano nesta cidade sem lei:

— Não estamos atendendo a nenhuma denúnica desse lado da Avenida Conde da Boa Vista (1).

Ao que responde, o cidadão: “por que razão?”

E ele: “os nossos fiscais não podem atravessar a avenida por causa dos arrastões que estão ocorrendo agora”.

— Arrastões? Meu amigo, de que lado os senhores estão?

— Em Santo Amaro.

Incrédulo, mas de posse do sarcasmo que aprendeu a usar para não sucumbir juntamente com a paisagem natural e com as edicações que aprendeu a amar, o nosso amigo ainda tenta:

—  Mas não é necessário atravessar a Conde da Boa Vista para ter acesso a este outro lado, se é que os arrastões estão assolando. Os fiscais podem usar o Bairro de Santo Antônio, a Avenida Agamenon Magalhães, o Bairro do Recife, ou até mesmo o roteiro Santo Amaro – Campo Grande – Encruzilhada – Aflitos – Torre – Madalena – Afogados – São José – Coelhos (2) e ... pimba, o outro lado da Conde da Boa Vista!

— Não pode não senhor.

Ao desligar o telefone, ele é tomado pelo desespero. Corre para a janela e se surpreende ao ver um imenso muro construído exatamente no eixo central da Avenida Conde da Boa Vista. De sua casa não consegue ver onde começa, nem onde termina. Não é que o homem ao telefone tinha razão? Com mais de 100 metros de altura, prolonga-se até perder de vista, rompendo a Avenida Guararapes e separando definitivamente a sede dos Correios dos seus irmãos moribundos, Trianon, Sertã e INSS (que um dia acomodou os sem saúde, outro os sem teto, hoje nem a mãe do guarda), rasgando o Bairro do Recife pela Avenida Marquês de Olinda e deixando o Barão do Rio Branco, em bronze, sem saber se o zero do marco (3) está sob ou para além do muro.

Desastradamente, a mão do projetista esquece o monumento falóide erguido sobre os arrecifes e o faz pender mansamente ao pé do muro. Na direção oeste ele segue como se tivesse sido concebido para separar semelhantes: as Graças se separam em duas, cada qual chorando a ausência da outra – o sino já não toca para uns, para a felicidade de outros; os Aflitos se tornam desesperados, como a gente da Torre e da Madalena, quando percebem que não mais irão ver o sol nas primeiras horas do dia. Dali, o muro faz uma pequena volta, para pisar solenemente sobre o casarão de João Alfredo (4), só para afirmar que nada é necessário preservar – ecos de uma tal igreja que, martirizada, também tombou (5). Em seguida, o grande criador ousou: seguiu traços curvos, graciosos, ondulantes; riscou na planície serena da Caxangá a divisão dos mundos (6).

Sem palavras, com a respiração de um moribundo, ele olha para cima, em busca de alguma saída ou de uma resposta para a existência de construção tão grandiosa: “Seria um sinal divino? Uma Babel rasgada no solo?”

Com certo esforço de suas pupilas exaustas, ele consegue perceber luzes no alto do muro. Sem pestanejar, corre em busca da sua luneta que, na adolescência, aprendeu a usar para discernir as três marias das três marias. A aponta para o alto, procura o foco e vê, solenemente assente, um senhor atrás de um telefone, acompanhado de alguns outros que nada fazem, a não ser ... olhar. Ao lado dele, afastado alguns metros, encontra-se outro senhor com seu telefone, e mais outro, e mais outro, todos com seus companheiros a cuidarem uns dos outros.

Desesperado, sai de sua casa em disparada e ruma para o sul. Durante a noite, às cegas, vaga sem destino: atravessa pontes, perde-se no manguesal, cruza linhas férreas, entra e sai de ruas sem saber ao certo onde estava. Encontra-se, finalmente, no sopé do Monte dos Guararapes. Mesmo cansado, resolve recobrar as forças e as esperanças no berço da nacionalidade (7). A subida é lenta e cansativa. Do alto, ele percebe os primeiros raios do sol. O negrume do céu vai dando lugar ao celeste azul. O sol parece reaquecer a sua razão e, como em um susto, ele se recorda do muro. Imediatamente, se volta para norte. Ao longe ele consegue ver aquela massa fantástica serpenteando na planície do Capibaribe. Nada o preparara, porém, para tamanha surpresa; em letras gigantescas lê-se: REQUIESCAT IN PACE.

notas

1
Avenida principal do Bairro da Boa Vista que o corta no sentido leste-oeste.

2
Bairros do Recife.

3
Marco de referenciamento geográfico.

4
Sede da 5ª. Regional do IPHAN.

5
Igreja dos Martírios, demolida no início dos anos de 1970 pela municipalidade para ampliar a Avenida Dantas Barreto, no centro histórico do Recife.

6
Graças, Torre, Madalena e Caxangá são bairros do Recife.

7
É no Monte dos Guararapes que se deram os confrontos que culminaram com a expulsão do invasor holandês. A historiografia nacional consagrou o sítio como o berço da nacionalidade brasileira.

sobre o autor

Luiz Amorim é professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, desenvolve pesquisa no Laboratório de Estudos Avançados em Arquitetura – lA2 , juntamente com a professora Claudia Loureiro, sobre requalificação de edificações para fins habitacionais com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

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