Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

my city ISSN 1982-9922

abstracts

how to quote

NERY, Raquel da Costa. Natividade: paisagem e patrimônio do antigo norte de Goiás, após vinte anos de seu tombamento. Minha Cidade, São Paulo, ano 08, n. 094.02, Vitruvius, maio 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/08.094/1892>.


“O arraial de Natividade, em 1.828”, desenho de Burschell. No centro a Igreja Matriz. Ao fundo, a Serra de Natividade, in “ O Brasil do 1º Reinado visto por W. Burschell – 1.825/1.829”


Bolo de arroz. Emerson Silva / FCT

Biscoito “Amor perfeito”. Emerson Silva / FCT

Detalhe da fundação de pedra e parede de adobe. Casario de Natividade. Raquel da Costa Nery

O homem do couro. Jorge Campana

Croqui de localização da cidade em relação à Serra de Natividade

Praça da matriz. Jorge Campana

Casario, ao fundo a Serra de Natividade. Raquel da Costa Nery

Filigrana de Natividade. Wagner Araújo / Acervo Monumenta

Casario de Natividade. Jorge Campana

Casario de Natividade. Raquel da Costa Nery

A pequena Olívia com seu brinco de filigrana. Raquel da Costa Nery

Jóias com a Pomba do Divino, filigrana de Natividade. Wagner Araújo / Acervo Monumenta

Filigrana de Natividade. Wagner Araújo / Acervo Monumenta

 

Em outubro de 2007 completa vinte anos que a cidade de Natividade foi tombada pelo IPHAN.

A pequena cidade do século XVIII, de difícil acesso no sudeste do Tocantins, preserva quase íntegra uma arquitetura colonial singela, que se destaca pelo seu apelo vernacular – são aproximadamente 260 imóveis tombados no perímetro de preservação do centro histórico.

A energia elétrica chegou somente há duas décadas e desde então o processo de expansão urbana – nas direções dos eixos norte, sul e oeste – poupou o traçado original de ruas e becos do núcleo histórico.

O processo de tombamento de Natividade na década de 1980 prometia ser um modelo de como a preservação de interesse arquitetônico e histórico poderia estar integrada à preservação da paisagem natural, ao indicar a proteção do elemento geográfico da Serra de Natividade por seu evidente vínculo com a origem da cidade (1).

A Serra foi o principal fator econômico para a população da cidade no século XVIII, por meio da atividade mineradora. Lá se encontram os vestígios das primeiras atividades de extração de ouro relacionadas à origem do núcleo urbano, como ruínas de diques, canais e abrigos residenciais, por conseguinte, a proposta original de tombamento incluía a vertente oeste da Serra, distante 1 km do núcleo histórico.

Hoje, vinte anos depois do reconhecimento de seu interesse arquitetônico, urbanístico e paisagístico, seria apropriado refletirmos sobre como podemos nos re-apropriar e renovar essa paisagem.

A Serra de Natividade

Uma revisão crítica do perímetro de tombamento é imprescindível, de modo a incluir e incorporar o lado oeste da Serra de Natividade. Eis o único elemento monumental em oposição à escala singela da cidade.

A anexação da vertente ocidental da Serra ao tombamento acenava como uma revigorante expressão do conceito de patrimônio, que prometia integrar a paisagem construída à paisagem natural. Entretanto por questões que fogem ao âmbito do interesse preservacionista, o lado oeste da Serra foi excluído do perímetro de tombamento de Natividade, o que é sem dúvida, uma perda para a cidade e para a compreensão do processo histórico e de ocupação do interior do Brasil.

Além da importância na composição da paisagem do horizonte da cidade, e do já mencionado valor histórico e arquitetônico relacionado às ruínas remanescentes da mineração e à origem do núcleo urbano, a Serra tem um valor agregado como recurso natural: é a principal fonte de água que abastece a cidade. Essas características reunidas argumentos mais que suficientes para justificar a obrigação da revisão do perímetro de tombamento.

Patrimônio imaterial

A discussão sobre a re-apropriação da paisagem de Natividade não se esgota na revisão do seu perímetro de tombamento. Mais do que um remanescente obscuro do ciclo da mineração, sua paisagem é composta por uma diversidade de referências culturais como celebrações, ofícios e saberes bastante peculiares, alguns muito vivos, enquanto outros, quase perdidos.

Entre os saberes e ofícios locais, alguns ainda não desapareceram porque estão animados no saber e no fazer de alguns poucos homens e mulheres Nativitanos. Esses conhecimentos são elementos de uma identidade social e cultural (2), a própria cultura local viva, através de técnicas de produção artesanais.

A tradicional ourivesaria de Natividade subsistiu por quase três séculos, provavelmente em função da atividade mineradora nas fazendas ao redor da cidade, que ainda prossegue (3).

Até duas décadas atrás, de acordo com alguns mestres de ofício em atuação, ainda era utilizado uma técnica de fundição arcaica, a partir de moldes de barro e óleo vegetal, provavelmente introduzida pelos escravos africanos (4).

A técnica característica da ourivesaria em Natividade é a milenar filigrana. De produção semelhante à de Portugal e Espanha, que por sua vez, tem origem árabe, a filigrana se torna singular e local ao incorporar símbolos da cultura popular, como as jóias com a pomba do Divino. Essa atividade vem conquistando o reconhecimento de seu valor como saber e ofício, desde a década de 90, e atualmente é objeto de estudos para seu registro como Patrimônio Imaterial.

Este é um ofício privilegiado na cidade, sob a perspectiva dos interesses, públicos e privados, que mobiliza: perto de desaparecer na década de 80, a joalheria começou a ser fomentada pelo Minc no final dos anos 90, e uma nova geração de aprendizes foi e continua sendo treinada no ofício (5).

No calendário religioso, a Festa do Divino é a mais intensa e importante, movimenta, ano a ano, toda a comunidade em sua expectativa, produção e fruição (6). A pomba do Divino Espírito Santo é um símbolo recorrente nas festas e nos ofícios: está nas bandeiras, uniformes dos foliões, pratos e copos da festa, nas jóias e sob a forma de doces.

A produção artesanal de bolos e doces remete às tradicionais receitas coloniais da cultura caipira – como o bolo de arroz na folha de bananeira, o bolo de “mãe”, entre outros, a produção de licores e cachaças, as técnicas de cestaria e de baús de couro e a construção com adobe (7) também perduram precariamente, mas estão ameaçados de desaparecimento.

O ofício da ourivesaria, as celebrações, as técnicas de produção artesanal local – partes incondicionais da história e do viver na cidade – congregados ao conjunto do casario colonial, ruas e becos, e à monumental Serra de Natividade – onipresente como um olho que tudo vê – convertem a cidade em uma autêntica experiência cultural.

Paisagem cultural

De acordo com essas características reunidas no mesmo espaço, deveríamos considerar correspondente e adequado o bom emprego do conceito de Paisagem Cultural para a cidade.

O conceito de paisagem cultural é apropriadamente aplicado quando há uma condição, local ou regional, em que o conjunto das celebrações, ofícios e saberes se relacionam com a paisagem natural e construída como um sistema, de forma a constituir uma experiência singular.

“Sua característica fundamental é a ocorrência em uma fração territorial, do convívio singular entre a Natureza, os espaços construídos e ocupados, os modos de produção e as atividades sociais e culturais. [...] Para que a Paisagem Cultural se configure, esses fatores devem guardar uma relação complementar entre si, capaz de estabelecer uma identidade que não possa ser conferida por qualquer um deles isoladamente” (8).

Em consonância com a recomendação da Unesco sobre a conservação integrada das áreas de paisagem cultural (9), a promoção de um modelo de desenvolvimento sustentável é uma excepcional alternativa às rígidas relações sociais e políticas que caracterizam Natividade – assim como demais comunidades onde pecuária e latifúndio predominam na paisagem econômica regional.

O resgate das técnicas de produção artesanal – com seu potencial de re-apropriação da identidade social – integrado à paisagem preservada, e ao calendário das celebrações possibilitaria redesenhar o austero destino rural de Natividade, sob uma nova perspectiva de qualidade de vida e cidadania para a comunidade, que finalmente, poderia se apropriar de modo simbólico e pragmático de sua herança cultural.

Vinte anos depois, ampliar o significado da preservação de Natividade para sua população e promover seu desenvolvimento sustentável é reafirmar a importância histórica e cultural que levou à sua inscrição nos Livros de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Histórico e de Belas Artes em 16 de outubro de 1.987.

notas

1
Ministério da Cultura, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. “Estado do Tocantins. Conjunto urbanístico, Arquitetônico e Paisagístico, Cidade de Natividade. Tombamento Federal. Cópia Resumida. (Processo nº 1.117-T-84/ SPHAN.). Brasília – DF”

2
LIMA, Ricardo. Artesanato: Cinco pontos para Discussão. In: Palestra Artesanato Solidário, Central Artesol, 2005. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br>

3
A extração de ouro, ainda que não tenha a abundância do passado, persiste como uma atividade de menor importância, mas constante, de caráter complementar à pecuária na região. Entre os demais fatores pelos quais poderíamos explicar a sobrevivência dessa técnica na cidade, seriam: o ensino do ofício de pai para filho, o isolamento da cidade dos grandes e médios centros comerciais e o valor simbólico da jóia de filigrana dentro da comunidade, que resiste culturalmente através do tempo.

4
A técnica de fundição do ouro foi introduzida no Brasil através do comércio de escravos. Genericamente identificados por negros “Mina”, os escravos eram provenientes da atual região de Angola, Moçambique, além dos grupos Minas – Yorubanos, Gegê, entre outros, e foram introduzidos na colônia em razão de sua experiência e domínio das técnicas de metalurgia e mineração na África. Foram inseridos no Brasil como mão de obra escrava especializada a partir do início do ciclo da mineração para atender às novas necessidades e modos de produção na colônia. OZANAM, Luiz. “As jóias dos negros: usuários e artífices nas Minas Gerais do século XVIII.” Revista da FADOM, Divinópolis-MG, n 13, p. 1- 5, 2003. Disponível em: <http://www.fadom.br>. Acesso em: 28 jul. 2007.

5
Perto de desaparecer na década de oitenta, a atividade joalheira começou a ser fomentada pelo Ministério da Cultura, através do Programa Monumenta, no final da década de 90, e uma nova geração de aprendizes foi e continua sendo treinada no ofício.

6
A festa do Divino Espírito Santo marca a comemoração do Pentecostes. A festa ganhou maior importância e representatividade no calendário religioso a partir do ciclo da mineração, e ocorre em várias regiões do interior do país. A Folia do Divino é parte dessa celebração: é uma alegoria da evangelização realizada pelos apóstolos (foliões) que atinge assentamentos isolados no interior, levando a mensagem do evangelho. No Domingo de Páscoa, após a bênção das bandeiras, as folias giram quarenta dias sertão adentro, na zona rural. A pomba do Divino Espírito Santo é um símbolo recorrente em vários elementos da festa: nas bandeiras, uniformes dos foliões, jóias de filigrana, pratos, copos, talheres, doces e bolos. Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) Natividade, Tocantins. Ficha de Identificação / Celebrações: Festa do Divino Espírito Santo. Natividade, Tocantins, 2007. Inédito.

7
O adobe foi intensamente substituído e desprezado nas novas construções da cidade. Feitas de finas paredes de tijolo furado e cimento, as novas construções públicas e privadas são inteiramente inadequadas às altas temperaturas na cidade ao longo do ano, ainda que bastante apropriadas aos interesses dos fornecedores locais de material de construção.

8
ALMEIDA, Luiz Fernando de. O futuro é a paisagem. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 10 jun. 2007.

9
“[...] é importante que as políticas de paisagem se inspirem nos princípios do desenvolvimento sustentável enquanto meta, com a adoção de medidas apropriadas para compatibilizar a evolução controlada da paisagem e as mudanças sócio-econômicas que tendem a alterar o meio ambiente”. Ministério da Cultura, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, CURY, Isabelle (Org.). Recomendação n. R (95) 9 Sobre a Conservação integrada das áreas de paisagens culturais como integrantes das políticas paisagísticas. Cartas Patrimoniais. Coleção Edições do patrimônio. 3ª Edição revista e aumentada. Rio de Janeiro, p. 293-345, 2004.

[artigo publicado originalmente, em versão resumida, na Revista Ciência e Cultura (SBPC), ano 59, número 5, São Paulo, out./nov./dez. 2007. ISSN 0009-6725]

sobre o autor

Raquel da Costa Nery graduou-se pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie, é arquiteta e urbanista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 2006. Assessora técnica da EMURB entre 2002 e 2004, fez parte da equipe do Programa de Reabilitação do Centro de São Paulo / Ação Centro

comments

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided