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my city ISSN 1982-9922

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português
O artigo faz uma análise crítica do Estudo de Impacto de Vizinhança do Porto Maravilha, Operação Urbana Consorciada da região portuária do Rio de Janeiro. A crítica baseia-se em pesquisas sócio-econômicas da própria Prefeitura e da autora.

how to quote

LOBO, Maria da Silveira. Porto Maravilha. O EIV do Professor Pancrácio. Minha Cidade, São Paulo, ano 11, n. 129.03, Vitruvius, abr. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/11.129/3842>.



"É tudo para o melhor no melhor dos mundos possíveis”
Cândido, O Otimista,Voltaire, 1758 (1)

A primeira coisa que chama atenção na leitura do EIV do projeto Porto Maravilha é a inexistência de qualquer menção ao projeto Porto do Rio Século XXI, lançado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, em 2007. Um projeto que integra um ambicioso plano logístico para a região fluminense, com previsão de aumentar o movimento do porto do Rio de US$ 11 bilhões para US$ 18 bilhões por ano (2). Desta movimentação dependerão investimentos nos setores de siderurgia, celulose, petróleo e gás, extrativista mineral, transporte e logística, telefonia e infraestrutura da ordem de 420,9 bilhões até 2016 (3). Mas, na proposta de zoneamento do projeto Porto Maravilha consta apenas a redução da atividade portuária, considerada poluidora, e seu deslocamento para o bairro do Cajú, embora não apresente um EIA/RIMA para esta área da AEIU, aprovada pela Lei Complementar 101/2009 (4). Além de demonizar a atividade portuária na cidade, atualmente majoritariamente reduzida ao transporte de carga limpa – carros, aço e produtos siderúrgicos – o EIV não leva em conta que a atividade portuária é fonte de uma carga tributária substancial. O Porto do Rio se destaca por movimentar produtos de alto valor agregado, na faixa de 850,0 US$/T e sua movimentação balanceada de exportação/importação cresceu, entre 2001 e 2008, à taxa média de 6,2% a.a. O EIV também não pondera que 46% dos cerca de 5.445 trabalhadores portuários (2005), residem na própria região portuária, sendo que os demais 54% residem na Baixada Fluminense e na zona oeste (5).

Porto do Rio de Janeiro cria novas áreas para aumentar capacidade de armazenagem [Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro]

O EIV do Porto Maravilha só apresenta considerações positivas sobre o impacto da movimentação de 550 mil passageiros marítimos por ano, podendo chegar a 2 milhões (6). O turismo é visto unicamente como fonte de divisas e de empregos diretos e indiretos, justificando investimentos em equipamentos culturais e de lazer espetaculosos e genéricos, isentos de pagamento de CEPACs (Certificados de Potencial Adicional de Construção): AquaRio (65 milhões de reais – prédio da Cibrazém); Pinacoteca ( 80 milhões de reais – Palácio Dom João VI – Saúde); Píer Mauá (300 milhões de reais – parque linear até o Canal do Mangue, anfiteatro, chafarizes, restaurantes e quiosques) e o Museu do Amanhã ( 120 milhões de reais – ppp e governos municipal e estadual – Armazéns 5 e 6 do Cais do Porto) (7). Os Certificados de Potencial Adicional de Construção são títulos mobiliários, regulados pela CVM, que serão negociados no mercado. Referem-se ao aumento do gabarito da região portuária de 6 pavimentos (18 m) para 30 (120 m) e 50 pavimentos (150 m) bem como o aumento do IAT (Índice de Aproveitamento do Terreno) de 1,0 para até 12,0.

Área de Especial Interesse Urbanístico [Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro]

Mesmo do ponto de vista do city marketing essa estratégia é questionável pois o alto grau de homogenização de waterfronts é um efeito colateral da globalização – sempre insaciável na busca de vantagens comparativas e identidades culturais locais – que não falta nos cálculos dos investidores. Por outro lado, o argumento citado no EIV de que estes equipamentos também aumentarão o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da região é falacioso, pois o atendimento aos direitos fundamentais da cidadania – saúde, educação e habitação – para a população atual não é igualmente contemplado com investimentos diretos. Além disso, tudo se passa como se o turismo não pudesse provocar aumento de criminalidade, tráfego de drogas e prostituição infantil, por exemplo. Essa visão panglossiana do El Dorado carioca desconsidera as campanhas das agências internacionais e do governo federal para alertar e prevenir a população sobre a outra face do turismo e omite medidas mitigadoras.

O levantamento do EIV dos equipamentos urbanos e comunitários é bem incompleto listando apenas 22 equipamentos quando há na região mais de 122 (8); deixando de incluir, na avaliação da demanda, estimativas sobre a população das favelas e apresentando conclusões falaciosas, como por exemplo, a de que a oferta de matrículas pelas redes municipal e estadual de ensino atendem à demanda atual (9). Ora, a gravidade da condição de escolaridade nos domicílios da região portuária é demonstrada em duas pesquisas encomendadas pelo Instituto Pereira Passos. Os moradores da região que cursaram o ensino fundamental completo somam apenas 15,0% e os que tem o ensino médio completo são apenas 19,8%, sendo que os analfabetos totalizam 2,7% dos moradores locais (10). Ressalte-se que o único colégio na região a oferecer ensino médio só o faz no turno da noite. A reivindicação pelos moradores de uma escola de ensino médio completo e de uma escola técnica data de pelo menos duas décadas. Consta que um projeto de uma Escola Técnica Portuária para a qualificação do trabalho com novas tecnologias - uma reivindicação desde a Lei da Modernização dos Portos de 1993 – em parceria com a Firjan, o Senac e os sindicatos de portuários, e que receberia verbas da França e da Itália, foi encaminhado ao Secretário de Urbanismo durante o Plano de 2001, Alfredo Sirkis (11). Contudo, o Projeto Porto Maravilha ignorou estas reivindicações e, em seu lugar, propõe uma Escola de Restauração Carioca e uma Escola do Audiovisual Carioca, interligadas à Vila Olímpica da Gamboa.

Em relação aos equipamentos de saúde, o diagnóstico do EIV do Porto Maravilha também conclui que não há demanda de novos centros de atendimento médico, ignorando o fato de que não há nenhum atendimento de emergência na região e nem mesmo uma farmácia 24 hs. Além disso, a Pró-Matre, instituição centenária de grande valor e que atendia também muitas mulheres da Baixada Fluminense, acaba de ser fechada.

Condição de ocupação, por bairro (%) [Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro]

O incremento populacional está sendo estimado da ordem de 301.610 habitantes, englobando a população residente, usuária e a flutuante, num prazo de 15 anos. No que diz respeito à habitação social, o projeto Porto Maravilha prevê apenas 500 moradias para famílias com renda acima de 5 salários mínimos a serem providas pelo programa da Secretaria Municipal do Habitat, Novas Alternativas (restauro de casario do século 19 em estado de ruínas) e a realocação de moradores em área de risco para construções do programa do governo federal Minha Casa Minha Vida, em terrenos bastante ruins. Ocorre que na região portuária predominam as famílias com renda até 3 salários (72,4%), faixa praticamente invisível para o mercado imobiliário (12). Em 2002, 51 % dos moradores ocupavam domicílios alugados (13).

O EIV também ignora o fato inegável de que a valorização imobiliária prevista pelo projeto gerará movimentos especulativos “expulsando” em curto prazo os moradores residentes de aluguel (o que tende a alimentar as favelas) e em longo prazo os que possuem pequenas propriedades, pela elevação dos valores dos imóveis (e como consequência dos impostos), ainda que neste último caso haja uma capitalização dos proprietários”, como observou Luiz Paulo Leal sobre o processo de gentrificação em curso (14). Uma medida mitigadora que está sendo reivindicada pelas associações de moradores é o congelamento do IPTU para os domicílios de famílias com renda até 3 salários mínimos ou com renda a partir de 5 salários mínimos, como é o caso do programa Novas Alternativas.

Rendimento dos moradores, por bairro (%) [Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro]

Mas, a questão é como se fazer ouvir? O Conselho Consultivo para a implementação e fiscalização da operação urbana consorciada é formado por um membro da CDURP, três representantes do município e três membros da sociedade civil, estes últimos escolhidos pelos demais integrantes do conselho. Ou seja: vamos combinar que não pode haver crítica, dissenso e contrapropostas, embora a lei 101/2009 estabeleça que as comunidades serão estimuladas a criar processos participativos. Em outras palavras, o atendimento às necessidades sociais ficou relegado à capacidade de mobilização dos próprios moradores e trabalhadores da região.

O sociólogo Alain Touraine tem uma explicação para esse “Salve-se quem puder !” Segundo ele, a revolução industrial e o capitalismo substituíram o paradigma político do século XVIII pelo econômico e social e agora vivemos numa era em que as categorias culturais estão substituindo as categorias sociais. A de-socialização, ou seja, o declínio dos valores sociais e a penetração generalizada da violência em mil faces estão desconstruindo as cidades. A organização social, ameaçada pela globalização não pode mais encontrar em si mesma os meios para se reerguer e é “embaixo”, no indivíduo, no comunitário, e não mais no princípio de cidadania, que encontramos a força para resistir todas as violências (15).

Concluindo, a Operação Urbana Consorciada da Companhia de Urbanização do Porto e do Consórcio de Empreiteiras não assume nenhum compromisso com o atendimento dos direitos fundamentais de 1ª e 2ª geração (direitos sócio-políticos): participação, saúde, educação, moradia, alimentação e assistência social (16). Todavia, em relação aos direitos de 3ª geração (direitos culturais e ambientais), o EIV considera prioridade a oferta de sofisticados equipamentos culturais e projetos paisagísticos. O aumento de 2,46% para 10,96% de área verde e de permeabilidade em relação à área total do empreendimento é louvável. Também são louváveis os investimentos em abastecimento de água, esgoto sanitário, drenagem, iluminação pública, distribuição de gás e serviços de telecomunicação. Porém, a tremenda discrepância entre zero investimento em educação e saúde, quase zero em moradia e 565 milhões de reais em cultura e lazer para turistas exige uma reorientação por parte da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro – CDURP. E é bom que isto seja feito antes que os CEPACs comecem a ser leiloados na Bovespa, possivelmente em maio do ano corrente.

Vista panorâmica
Foto Maurício Hora

Felizmente, os moradores e trabalhadores do porto do Rio já estão se organizando para defender seus direitos legítimos de cidadania. Retomando Voltaire, na versão de Mazzaropi, o professor Pancrácio terá agora que se haver com o impacto da Vizinha Faladeira, dos Filhos de Gandhi, dos Gigantes pela Própria Natureza, dos Escravos da Mauá, entre outros muitos grupos culturais, associações de moradores e associações profissionais locais.

notas

1
Cândido, ou O Otimismo, ("Candide, ou l'Optimisme") (1758) é um romance filosófico de autoria do pensador iluminista Voltaire e onde Leibniz é representado pelo filósofo Pangloss, o mestre de Cândido que vive afirmando com otimismo “É tudo para o melhor no melhor dos mundos possíveis". Na versão brasileira (filme Candinho, de Mazzaropi) Pangloss é o professor Pancrácio. Depois de uma série de aventuras e desventuras, inclusive no El Dorado na América do Sul, o romance encerra com Cândido finalmente contestando o otimismo exposto por Pangloss, dizendo "É necessário cultivar o nosso jardim".

2
PINHO, Delmo. Desafios e oportunidades logísticas no Estado do Rio do Século XXl. Secretaria de Transportes do Governo do Estado do Rio de Janeiro, apresentação em 27 de agosto de 2007.

3
Fonte: Valor Econômico, 06 out. 2006. Apud PDZ – Plano de Desenvolvimento e Zoneamento do Porto do Rio de Janeiro, Plano de Adequação, set. 2009 <www.portosrio.gov.br/downloads/pdz_rio_23.pdf>.

4
Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio. Estudo de Impacto de Vizinhança – III. Caracterização do Empreendimento, p. 30 <www.portomaravilhario.com.br/media/eiv/III.%20Caracterizacao%20do%20Empreendimento.pdf>. Para uma análise preliminar sobre aspectos legais problemáticos do EIV do Porto, acesse o artigo online da perita ambiental Simone de Oliveira Goulart <http://redepv.org.br/voluntariosrio/2011/03/analise-preliminar-do-capitulo-aspectos-legais-do-estudo-de-impacto-de-vizinhanca-eiv-do-porto-maravilha/>.

5
SILVA, Maria Dalva Casimiro da. Relações de Trabalho no Cais do Porto do Rio de Janeiro:Resistência e Modernização- dissertação de mestrado em Serviço Social –2007 – orientador: Prof. Dr. Giuseppe Mário Cocco – UFRJ – Em 2005, havia 1.169 arrumadores + 468 bloquistas + 277 conferentes + 114 consertadores + 2.316 estivadores + 664 portuários + 437 vigias = 5.445.

6
Segundo a administração do píer, são esperados para a temporada de 2010/2011 cerca de 800 mil turistas, com 255 atracações previstas. Fonte: Site Portos e Navios. Disponível em: <www.portosenavios.com.br/site/noticiario/portos-e-logistica/5764-pier-maua-anuncia-a-maior-temporada-decruzeiros-maritimos-da-historia-do-rio-de-janeiro. Acesso em 10/10/2010> Apud BENTES, Júlio Cláudio da Gama. Análise dos Planos Urbanísticos Recentes para a Região Portuária do Rio de Janeiro. I Enamparq, Rio de Janeiro, 2010.

7
Valores citados in BENTES, Júlio Cláudio da Gama. Op. cit.

8
Ver LOBO, Maria da Silveira. Guia do cidadão do porto do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, FAU UFRJ, 2010.

9
Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio – Estudo de Impacto de Vizinhança – V. Situação Atual e Futura: equipamentos urbanos e comunitários, p. 100 e 101.

10
“Região Portuária: perfil, demandas e expectativas dos moradores”, novembro de 2002, Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE. No gráfico 6 desta pesquisa fica patente a gravidade da condição de escolaridade nos domicílios da região portuária, tanto entre crianças e jovens como entre adultos: 40% a 45% dos moradores sequer completou o ensino fundamental e apenas cerca de 20% a 30% cursou o ensino médio.

11
LOBO, Maria da Silveira. Participação comunitária e sustentabilidade social no projeto urbano do Porto do Rio. Pesquisa de pós-doutoramento. Prourb FAU UFRJ (CNPq 2007-2008 e Faperj 2009).

12
Ver: 1. Pesquisa Sócio-Econômica Porto do Rio (dez. 2002). Coordenação: Diretoria de informações da Cidade do DIC-IPP/AGRAR Consultoria e Estudos Técnicos -p. 20, gráfico 14.

13
“Região Portuária: perfil, demandas e expectativas dos moradores”, novembro de 2002, Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE – gráfico 2.

14
LEAL, Luiz Paulo. Desafios para a requalificação da região portuária do Rio de Janeiro: Desfazendo os estigmas sociais e a segregação. I Enamparq, Rio de Janeiro, 2010.

15
TOURAINE, Alain. Um novo paradigma para compreender o mundo de hoje (2005). Tradução Gentil Avelino Titton. Petrópolis, Vozes, 2006.

16
Sobre os direitos sociais de 1ª e 2ª geração ver o clássico estudo do sociólogo MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro, Zahar, 1967.

sobre a autora

Maria da Silveira Lobo é socióloga-urbanista, com graduação em sociologia e ciências políticas pela PUC-RJ, mestrado e doutorado em estruturas ambientais urbanas pela FAU USP e pós-doutorado pelo Prourb FAU UFRJ. Sua pesquisa “Participação Comunitária e Sustentabilidade Social no Projeto Urbano do Porto do Rio” (CNPq 2007-2008 e Faperj 2009) incluiu a realização de grupos focais com a participação de 60 moradores e líderes comunitários. Em 2009, a autora coordenou um workshop na região portuária por ocasião do 8 Docomomo Brasil, Momocon: um exercício da síntese das artes para a conservação do patrimônio moderno. E no início deste ano lançou o Guia do Cidadão do Porto do Rio de Janeiro, com 122 endereços, fotografias, mapas e descrição de projetos sociais e culturais, instituições de ensino e saúde, associações de moradores e de profissionais, e serviços de utilidade pública oferecidos na região.

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