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my city ISSN 1982-9922

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No dia 28 do mês de Janeiro deste ano de 2011 foi comemorado, em Espírito Santo do Pinhal, com muita melancolia, o fim do cinema mais antigo da cidade, o Cine Éden

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VERGUEIRO, Frederico. Adeus cine-teatro, feliz cine-rua. A ultima sessão no Cine Éden. Minha Cidade, São Paulo, ano 11, n. 131.01, Vitruvius, jun. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/11.131/3910>.



Não sei se foi sorte, mas as estrelas brilharam num céu sem nuvens no dia 28 do chuvoso mês de Janeiro deste ano de 2011 em Espírito Santo do Pinhal. Nessa cidade do interior paulista com seus 40 mil habitantes, quase na divisa com Minas Gerais, foi comemorado, mesmo que com muita melancolia o fim do cinema mais antigo da cidade. Mas não o último. Aproximadamente 300 pessoas assistiram em meio aos escombros do antigo Cine Éden e pela ultima vez naquele lugar, a um filme de Mazzaropi, souberam que Marilyn Monroe, além do vestido esvoaçante também já tocou “cavaquinho” no cinema e perceberam que a demolição do Italiano Cine Paradiso também conta um pouco de sua própria historia, que em grande parte foi escrita ou construída por italianos e seus descendentes, inclusive o próprio edifício o qual viam no chão. A ocasião ficou conhecida como Saideira do Éden, a ultima sessão no Cine Éden, na Ruína Ítalo-Brasileira Pinhalense, o próprio terreno em escombros do antigo cinema.

O Cine Éden em questão foi de fato um teatro inaugurado em 6 de junho de 1913, primeiro Teatro construído em Pinhal já com o nome de Teatro Éden. Possuía platéia e frisas no formato de ferradura e chegou a oferecer 900 lugares naquela época. A fachada do teatro era realmente notável, uma lira no alto do frontão e eclética com linguagem clássica como a maioria dos edifícios do século 19 e começo do 20 na cidade.

No final da década de quarenta passou por uma reforma. Deixou de ter as frisas e passou a contar somente com os assentos da platéia. Sua fachada foi completamente modificada. O novo traçado se aproxima do padrão comercial americano. Ganhou um átrio marcado por duas colunas arredondadas sob uma marquise que avança sobre o passeio público e que demarcam o vazio de acesso central. Bilheteria lateral. Os banheiros continuaram nas laterais do antigo palco o qual agora servia como plano de projeção.

Em 1992, com o filme The Doors, o Cine Éden encerrou suas atividades. Alguns filmes ainda seriam projetados na sala, mas na forma de eventos esporádicos. Poucos anos depois e até então algumas lojas se instalaram no espaço de seu foyer. Nada relacionado à atividade cinematográfica.

Em dezembro de 2010 o edifício foi demolido. Aos poucos tudo foi sumindo. Os fragmentos do que havia sido aquele prédio passaram a ser mais notáveis, de uma forma que jamais foram, e depois que quase tudo foi removido tornou-se possível notar entre as frestas do quarteirão um grande pórtico - imenso em sua condição de contraste com o vazio. Era o palco. Paredes curvas nas laterais próximas às coxias, bases sólidas com banheiros em cada lado e uma grande dupla de vigas atravessadas e ornadas com modenaturas. A parede de fundo não existia mais.

Quem entrasse naquele terreno, sem duvida ficaria fascinado. Uma visão catastrófica, muita sujeira, muitos destroços, muita bagunça, típicos de muitas construções e ainda mais no caso de uma desconstrução. Já outros, também fascinados, poderiam se impressionar pela majestade do palco sem paredes, escalar com os olhos as pilastras laterais que a partir de sua base com suas caneluras de argamassa e tinta se desnudavam até o alto onde só restaram tijolos e as pontas das armaduras. No ritmo deste passeio com os olhos compreender todas as camadas e etapas que tornaram aquele prédio o que havia sido. As mesmas reminiscências que aquelas paredes traziam em relação à sua construção também carregavam visões do que sempre havia se passado ali em relação aos encontros que proporcionaram aos seus expectadores. Estes eventos, ou seja, os acontecimentos e a apreensão da cultura em coletivo que se manifestaram ali por muito tempo tinham a oportunidade de se manifestar novamente.

O palco não foi demolido por questões técnicas e de segurança naquele momento, provavelmente o será nos próximos meses. Foi isso que manteve tão intensamente a essência daquele lugar. O estalar deste instante não poderia se esvair de maneira tão ordinária.

O prédio em si, é preciso ousar para admitir, representava pouca coisa e é justamente o lugar e aquele momento que importavam. O lugar se manifesta nesta mistura do que é, está ou estava construído e do que aconteceu lá. A própria arte do cinema, a reunião das pessoas, sua demolição são maiores do que a própria construção em si neste caso. Os valores arquitetônicos associados a ele eram sua localização dentro de um perímetro urbano com valor histórico de relevância reconhecida pelo município – mas não em um conjunto existente de imóveis inventariados – e a sua própria condição de singularidade.

A apreensão dele em sua condição de artefato arquitetônico, principalmente pela população, foi dificultada pelos seus próprios percalços. Primeiro pelo fato de sua condição original e tão glorificada ter sido alterada pela reforma da década de 40, como já foi dito e que é justamente a característica que o enquadra dentro do contexto de supremacia do cinema hollywoodiano.  A ruptura brusca evidente nestes exemplos da cidade cria esta condição quase maniqueísta entre edifício eclético ornamentado bom e edifício moderno ordinário. A cidade inclusive tem um acervo moderno ou modernista que é invisível. De fato invisível. O segundo percalço é o tempo ocioso que ele permanece funcionando após o encerramento das atividades como cinema. É neste intervalo entre finais que as lojas se instalam e as pequenas intervenções encobrem quase que estrategicamente tudo o que poderia nos fazer supor que aquilo foi um cinema. Parecem intervenções pequenas, mas são as que mais causam rupturas. Foi comum ouvir rumores das pessoas se perguntando onde estava o piso inclinado da platéia soterrado pela laje plana da nova loja.

Foram vencidas algumas burocracias, o evento recebeu apoio público na forma de serviços prestados e privado através de patrocinadores. Tudo em meio à característica subjetividade da administração pública e das solidariedades social das pequenas cidades que, segundo os critérios da tradição, mais atrapalham do que ajudam e vice versa.

As cadeiras foram posicionadas no mesmo sentido da platéia e a montagem da tela de projeção foi emoldurada pelo palco remanescente ao fundo. Pipoqueiro, um altar de tijolos com películas 35mm sobre ele. Cartazes de cinema, tapete vermelho, muita luz. Foi uma cuidadosa construção simbólica para concretizar uma atmosfera emotiva e cinematográfica e potencializar ao máximo a ultima experiência ali.

A sessão estava para começar. Na imensidão silenciosa do terreno vazio os espectadores só ouviam os sons do velho oeste italiano de Ennio Morricone. Um breve silêncio e a primeira luz no telão revelou o próprio Cine Paradiso vir abaixo neste abrupto encontro forçado entre a realidade e a ficção. Logo em seguida outra cena do mesmo filme, só que anterior. Salvatore, o personagem protagonista, caminha pelo cinema já em ruínas da mesma forma que cada um dos espectadores ali estava tendo a chance fazer. Por fim, a ultima cena de um momento muito próximo do inicio do filme, mostra Alfredo, com um truque de espelhos, projetar o filme através da janela da sala de projeção direto para a praça.

Essa inversão de cenas sanou a angústia de citar um filme tão evocado, mas ao mesmo tempo atualizar atitudes tão engessadas. Mostrar que com as mesmas cenas é possível criar um novo filme. Depois de aproximadamente dez minutos de argumentações com o legado foi possível se entregar para a autenticidade dos filmes da época numa mistura também pouco convencional entre Mazzaropi e Marilyn Monroe.

A noite passou como um sonho. Uma noite festiva toda para a tristeza. Uma festa da tristeza. Foi como um samba. Como uma exaltação de algo que é triste e praticamente inevitável.

Depois dela muito foi falado sobre o resgate e até a questão do patrimônio. No meio da organização apareceram as primeiras noticias sobre o fechamento do cine Belas Artes em São Paulo. Foi desconcertante a idéia de que se celebrava um fim enquanto as pessoas reivindicavam uma permanência. Não gosto da expressão resgate. A cultura de uma população é o que ela é mais o que ela foi e um tanto do que ela quer ser. Não da pra separar nem resgatar. Lembrar e insistir na lembrança talvez.  Se existem coisas antes que não existem hoje tem a ver com o que as pessoas são hoje, o que a cultura é hoje. Atualmente talvez muito mais uma cultura de esquecer, do que de lembrar. Cada uma delas tem suas conseqüências. No caso de esquecer espera-se que o que foi esquecido seja substituído por algo diferente. Quando não é, me parece apatia. E isso sim tem um gosto amargo.

Sobre lembrar ou esquecer, a única coisa que foi explicitamente lembrado nesta ocasião foi um aspecto da cultura que tem a ver com o encontro. Quando se escolhe ver um filme em casa não se perde de fato quase nada do filme em si, ainda mais com uma TV imensa. Perde-se sim a idéia do que são as pessoas que encontraríamos. Os encontros na cidade nunca serão e não devem ser sempre felizes. Aprende-se com o encontro, nos deparamos com o outro diferente, tomamos conhecimento de nossa condição social.

Na parede estava escrito “Adeus cine-teatro, feliz cine-rua”. No fundo tudo aquilo pretendia propor uma libertação do cinema neste caso, mas da arte e cultura como um todo. Pretende-se exibir no futuro outros filmes em outros espaços abertos, públicos ou vazios, mas sempre relevantes, sejam eles consagrados ou esquecidos. Cine-rua. Um direito de se manifestar em qualquer lugar para que as pessoas possam se apropriar deles da maneira que puderem. Uma alternativa de espaço da arte, menos burocrático, menos dispendiosa, mais democrática e não menos relevante como espaço na cidade.

Sem dúvida tudo isso significa também um desaparecimento ou afastamento dos programas culturais para espaços urbanos marginalizados no ideário da cidade mercadoria, como a própria rua por exemplo. O tombamento tem sido uma resposta única para uma infinidade de prejuízos sociais e espaciais urbanos, mas que ainda conta com instrumentos legais limitados e metodologia imprecisa. Os centros culturais reforçam a incompatibilidade de manutenção dos espaços de cultura no tabuleiro econômico dos lotes urbanos e ocorrem muitas vezes como manobras muito pouco autênticas e exageradamente especializadas.

É justamente a oportunidade de se revisar a inserção e manutenção dos edifícios, equipamentos, espaços culturais seus modelos a partir da mudança do ponto de vista em que os entendemos como exceção e segregação na cidade e na vida cotidiana.

sobre o autor

Frederico Vergueiro Costa é estudante de graduação em Arquitetura e Urbanismo na Unicamp, bolsista de iniciação científica da Fapesp e nasceu em  Espírito Santo do Pinhal SP. Foi idealizador e produtor do evento “Saideira do Éden”, com a colaboração de Simone Yunes.

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