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my city ISSN 1982-9922

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Este artigo questiona o tipo de arquitetura que transforma as cidades e suas implicâncias sociais

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GHIONE, Roberto. Que cidade estamos construindo? Metrópole e sociedade contemporâneas. Minha Cidade, São Paulo, ano 12, n. 143.01, Vitruvius, jun. 2012 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/12.143/4369>.



A cidade é a criação mais apaixonante, complexa e contraditória do homem vivendo em sociedade. Ela é um espelho fiel dos valores, ambições, misérias e grandezas dos seus habitantes. A estrutura histórica da cidade permite entender as ideologias dos seus moradores nos diferentes tempos da sua história e a construção da cidade contemporânea será a testemunha pela qual seremos julgados pelas gerações vindouras. Os valores e fetiches de uma sociedade são construídos e representados nos seus edifícios e espaços públicos.

Cidade e sociedade formam uma unidade indissolúvel. A primeira é material e a segunda existencial. Edifícios e espaços públicos/privados constituem a primeira; sistemas de relações e intercambio de energia vital dão sentido à segunda. Os valores de uma sociedade reflete-se na imagem da cidade que a contém, ao mesmo tempo em que a estrutura urbana condiciona o comportamento social.

Fragmentada e excludente

A cidade contemporânea, no nosso contexto de país emergente, manifesta as virtudes e os vícios da sua sociedade. Duas características marcam nossas grandes cidades: elas são fragmentadas e excludentes. São fragmentadas no sentido de refletir a própria fragmentação da nossa sociedade em diferentes tipos sociais que se agrupam pelo poder econômico, modos de usar os espaços, adição a determinados gostos e expressões sociais, etc. Uma consequência evidente dessa fragmentação são os edifícios e condomínios residenciais autossuficientes e antissociais, plenos de "itens de lazer" promovidos pelo mercado imobiliário, que aglutinam membros de interesses semelhantes. Em nome da segurança, se fecham ao espaço público e resolvem suas necessidades de integração social intramuros. O ponto de contato entre o condomínio e a cidade é o portão, convenientemente vigiado, de entrada e saída de carros, muitos deles de vidros escuros que tornam invisíveis seus moradores aos cidadãos da rua.

A arquitetura desses edifícios e condomínios é o agente de transformação da cidade contemporânea. Muros, cercas, guaritas e portões são os elementos de contato entre a rua e o domínio privado. Sem pontos de encontros  sociais, o espaço público torna-se desabitado e perigoso. Em nome da segurança cria-se mais insegurança. Os conceitos de urbanidade e civilidade são questionados pela antissociabilidade destes projetos. A desumanização do espaço público e o predomínio de automóveis que expulsam as pessoas são as marcas de um urbanismo tecnocrático e interesseiro, que transforma as cidades em ambitos de discórdia e violência e acaba de inaugurar o mais recente problema: a imobilidade urbana.

Jan Gehl (1) em Cities for people, considera que edifícios em altura são contraditórios com a vivência do espaço urbano. Segundo ele, até o quinto andar é possível ter contato com a rua e com a vivência urbana. Esse conceito é contrário ao urbanismo comercial e especulativo da maioria das cidades brasileiras. O individualismo e hedonismo da nossa sociedade leva a uma valorização inversa: o m² de maior valor é o que mais se afasta da rua e os apartamentos de cobertura estão entre os mais apetecíveis objetos de consumo da nossa sociedade.

A fragmentação, o individualismo e a antissociabilidade desta arquitetura que desfigura a cidade contemporânea tem outra consequência nefasta: ela só é possível com a utilização do automóvel. O espaço público perde sua conotação existencial como lugar de encontro e de relacionamento social e passa a ser local de passagem em automóvel de uma unidade autossuficiente para outra (do condomínio residencial ao empresarial, deste ao shopping, á academia, etc.). A estrutura urbana reproduz o modelo de zonificação, tão questionado no urbanismo moderno, encaixado numa quadrícula urbana. Os elementos da paisagem urbana (calçadas, mobiliário, arborização, etc.) sofrem uma permanente degradação por não existir o natural controle que fornece o uso e apropriação pelos habitantes da cidade.

A paisagem urbana torna-se caótica e imprevista. Os critérios que a definem são abstratos: indicadores de edificação, taxas de ocupação, afastamentos e gabaritos são instrumentos necessários, porém não suficientes para configurar a cidade. Utilizam-se elementos abstratos para definir uma realidade concreta. O resultado é a "cidade de objetos" que caracteriza as urbanizações do último meio século, diferente da "cidade de espaços", que define as estruturações urbanas até a primeira metade do século passado. Os conceitos de design urbano, espacialidade, sociabilidade, integração, inclusão, permeabilidade, qualidade e sustentabilidade urbana e tantos outros que definem objetivos e premissas das operações de urbanização contemporâneas pelo mundo afora, parecem passar inadvertidas no Brasil, impactando na sociedade local, que determina seus comportamentos sociais em função do medo e da insegurança. O urbanismo tecnocrático e com visões fragmentadas, questionado durante os últimos quarenta anos, continua implementando-se no Brasil e o resultado são cidades sem alma e sociedades mergulhadas no hedonismo, na individualidade e na violência, marcas profundas do mundo sub desenvolvido.

As leis que regulam o desenvolvimento urbano atendem preferentemente a interesses setoriais e individuais e postergam o benefício público. Neste contexto, grupos empresariais utilizam a cidade como mercancia para resolver suas ânsias de lucro e arquitetos ficam reféns deles projetando arquitetura imobiliária e equipamentos que pouco contribuem com a integração social e a promoção de uso dos espaços da cidade. Tudo isso devidamente enquadrado em leis que pouco priorizam o interesse da comunidade e determinam o predomínio de um modelo convenientemente midiatizado, que privilegia a determinados setores e conduzem o restante da sociedade ao caos e à desintegração.

A mistura de usos não está contemplada nas leis de uso e ocupação do solo, nem parece ser conveniente aos interesses de empresários do mercado imobiliário. O edifício residencial de uso exclusivo provoca a degradação e a morte do espaço urbano. Jane Jacobs alertava, já nos anos '50, acerca dessa prática urbanística (2). Ela fomentava a "promiscuidade urbana", a convivência de todos os usos que permitem vivenciar os espaços públicos e integrar seus habitantes. Seu célebre livro "Morte e vida das grandes cidades americanas" foi editado em 1961, mas dá a sensação que suas lições e outras de inúmeros autores ao longo dos últimos 50 anos ainda não foram aprendidas ou não interessam às pessoas que tomam conta do urbanismo das nossas cidades.

A exclusão social é motivo e consequência da fragmentação. Quem não tem condição de pertencer a determinado grupo é excluído. A persistente injustiça social torna-se mais evidente em contextos urbanos excludentes. O simples fato de pertencer a um grupo determinado, nos faz cúmplices das desigualdades e da dor de nossos semelhantes. Os cidadãos mais vulneráveis sentem se ignorados e humilhados, alimentando a espiral de segregação social e de violência.

A recreação e o lazer encontra no shopping center o local mais representativo do modelo de cidade que estamos gestando. O grupo que o usufrui goza de todos os privilégios da sua condição: encontro social, segurança, status, consumo. Assim como o teatro exibia a sociedade do Século XIX, o shopping exibe a sociedade contemporânea. As outras tribos, as que não podem, vão para o centro da cidade, num ambiente degradado e desvalorizado.

Dos inúmeros problemas da cidade contemporânea, dois são extremamente preocupantes, ao ponto de afetar cotidianamente a todos seus habitantes: segurança e mobilidade. Nas origens de ambos, o tipo edilício "edifício residencial de uso exclusivo" possui grande parte da responsabilidade por fomentar precisamente a antissociabilidade, a antiurbanidade e a anticivilidade e pertencer a um modelo de cidade que precisa do automóvel para resolver todos os requerimentos urbanos dos seus moradores.

Periferias

As periferias das nossas cidades experimentam processos contraditórios. Como extensão da cidade fragmentada e excludente abrigam condomínios fechados, verdadeiras cidades dentro da cidade, com rigorosos controles de acesso e leis próprias, onde os moradores constroem o sonho de morar em contato com a natureza domesticada em recuos e quintais de casas e em áreas verdes de domínio dos condôminos. Nestas urbanizações o transporte público não é considerado e o automóvel é o meio de contato com a cidade e complicador da mobilidade urbana.

A outra versão da periferia é a mais triste e conhecida: a ocupação informal de áreas carentes de serviços urbanos adequados, que confinam grandes setores da população a uma moradia sem as qualidades urbanas necessárias para fomentar o desenvolvimento de uma sociedade sadia e civilizada. A resposta oficial a esse problema vem dos planos de moradia popular que pouco oferecem ao desenvolvimento social desses grupos. Unidades repetitivas, planejamento burocrático e soluções padronizadas só contribuem com a alienação e a marginalidade, que transformam novos bairros em caldo de cultivo de delinquência e violência que afeta à sociedade toda. Sem ideias de cidade e sem aprofundamento nas condições sociais e culturais da habitação popular, perdem se inúmeras oportunidades de desenvolver uma cidade integrada social e urbanisticamente, intensificando a fragmentação e a exclusão.

Urbanidade e civilidade são objetivos supremos da atuação na cidade: o estímulo do convívio entre diferentes grupos sociais; a integração e respeito pelas diferenças sociais, políticas e culturais; o predomínio dos valores da ética e da democracia nas grandes decisões que afetam à cidade como bem coletivo são instrumentos essenciais para obter edifícios e espaços urbanos qualificados e que dignifiquem o habitar na cidade. Sem esses princípios, a sociedade caminha para a fragmentação e exclusão, e a cidade para a morte dos seus espaços urbanos.

As diferenças e as desigualdades são próprias da natureza humana e, como tais, são retratadas pelas cidades. Pensar outra coisa é utopia. Mas não custa sonhar e imaginar um mundo melhor, sabendo que sonho e imaginação são os primeiros passos para mudar uma realidade.

notas

1
GEHL, Jan. Cities for people. Washington, Island Press, 2010.

2
JACOBS, Jane, Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2009.

sobre o autor

Roberto Ghione, arquiteto, é formado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-graduado em Preservação do Patrimônio, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Universidad Católica de Córdoba. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados, Recife, PE.

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