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my city ISSN 1982-9922

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Wellington Cançado analisa a maneira como está sendo encaminhado o projeto do Corredor Cultural Estação da Artes, em Belo Horizonte.

how to quote

CANÇADO, Wellington. Corredor Cultural Estação da Artes: dilemas da participação. Minha Cidade, São Paulo, ano 13, n. 155.02, Vitruvius, jun. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/13.155/4763>.


Praia da Estação, 2011
Foto Wellington Cançado


Difícil não ficar, em um primeiro momento, bastante otimista e empolgado dadas as propostas e os encaminhamentos apresentados por Rafael Barros em nome da Comissão de Acompanhamento do projeto do Corredor Cultural Estação das Artes (1), na noite do dia 28 de maio, no CentoeQuatro. E também feliz, frente à grande quantidade de pessoas presentes e disponíveis para discutir e participar da construção de um outro modelo de política cultural e espaço urbano. Mas principalmente porque as ideias e proposições apresentadas são, sobretudo, estruturais e potencialmente transformadoras das relações e dos espaços e equipamentos públicos localizados na área de abrangência do Corredor, no Hipercentro de Belo Horizonte.

Impossível também, infelizmente, não perceber o quanto essas propostas imaginativas e transformadoras, bem como a participação efetiva dos diversos grupos culturais e movimentos sociais envolvidos, esbarram nas escolhas feitas pelos autores do projeto de desenho urbano, coordenado pelo arquiteto André Buarque. E perceber também como essas animadoras proposições emperram e até retrocedem na medida em que a própria participação dos cidadãos e o acompanhamento da Comissão passam a legitimar tanto a pertinência do Corredor quanto o desenho urbano proposto.

Nesse sentido, para avançarmos, cabe inicialmente perguntar: a quem realmente interessa um Corredor Cultural nos moldes propostos? O que realmente se entende por arte e cultura no âmbito desse Corredor? Qual o papel da Comissão de Acompanhamento para além do mero acompanhamento? E, por último, quais as possibilidades colaborativas e cidadãs não consideradas para o (re)desenho dos espaços propostos pelos arquitetos?

Como apresentado e discutido até então, o projeto do Corredor Cultural Estação da Artes parece ser mais um projeto de gentrificação do espaço urbano, como realizado em diversas áreas centrais das cidades brasileiras nas últimas décadas, inclusive em Belo Horizonte, sob o pretexto de “revitalização” de áreas supostamente degradadas. Como sabemos, o que se entende por degradado por essas bandas são todas aquelas manifestações populares e espontâneas que escapam aos manuais da “modernidade” e que desafiam cotidianamente a capacidade coercitiva e o ímpeto higienizador das políticas públicas. E por trás desses projetos que pretendem “requalificar” lugares já cheios de vida e qualidades, se escondem enormes interesses imobiliários e estratégias políticas elitistas e conservadoras que visam a substituição de práticas e grupos tradicionais por um conjunto homogêneo de atividades e espaços.

No caso específico do Corredor, localizado em área de grande diversidade cultural e social, para além dos macro-interesses citados acima, parece ainda escapar à nossa compreensão quais poderiam ser exatamente os interesses dos grupos e populações locais na sua implementação. Afinal, o que efetivamente ganhariam com o Corredor Cultural – de caráter fortemente institucionalizado e que replica explicitamente os trejeitos das piores revitalizações – grupos como o Duelo de MC’s, o Espanca!, a Praia da Estação, a população de rua, a juventude organizada? Uma das respostas, talvez a mais óbvia mas nem por isso menos importante, é que a participação destes e outros grupos amplia de forma considerável a participação popular nas decisões sobre o destino do espaço que habitam. E que uma vez que o Corredor vai mesmo acontecer – caso consiga os recursos federais – melhor que aconteça com a participação dos interessados diretos.

Pois, para além da inclusão e da participação direta, como observado no debate público do dia 28 de maio, parece faltar aos grupos afetados e envolvidos, assim como à sociedade como um todo, uma certa dose de ambição e utopia. Além de uma agenda própria com prioridades e propostas que pudessem reger a política local e libertar os movimentos sociais da obrigação de sempre reagirem para evitar projetos equivocados “goela abaixo”. Mas, afinal, voltando ao Corredor Cultural, já que fomos finalmente aceitos e incluídos nos processos de decisão, porque não ambicionarmos possibilidades até então improváveis e imaginarmos o que parecia impossível?

Essa questão nos leva à discussão fundamental, mas secundária até então, do que realmente estamos considerando por “cultural” e por “arte” no Corredor. E se nos detivermos as práticas e ações já realizadas pelos grupos representados na Comissão e presentes aos debates, tanto a ideia de cultura como a de arte são bastante amplas e abrangentes, com forte experimentação estética além de cunho antropológico e político. Entretanto, frente ao “aprisionamento” das atividades culturais e artísticas como apresentado no projeto arquitetônico e referendado pela Comissão, nos deparamos com a imensa contradição de que em uma das regiões mais férteis, diversas e subversivas da cidade, onde diferentes manifestações coexistem livremente sem hierarquias, esses mesmos grupos parecem apoiar a implementação de um projeto em que a “cultura” e a “arte” estão completamente domesticadas, controladas e esvaziadas de sentido pelos interesses corporativos, pelo motor do entretenimento ou pela museificação das práticas e lugares. E de repente, em prol da oportunidade de participação que nos foi gentilmente oferecida pela benevolente Prefeitura, nos esqueceremos de problematizar a instrumentalização oficial da arte e da cultura e o apaziguamento dos conflitos sociais através das soluções patafísicas do urbanismo?

Não é de se estranhar que, logo após o falacioso e autoritário “Circuito Cultural da Praça da Liberdade”, a cidade se proponha a implementar outro conjunto de equipamentos culturais, aparentemente tão sem propósito ou conteúdo quanto aquele, e novamente em um espaço altamente simbólico? Mas agora com o agravante de ser a Praça da Estação um dos símbolos da resistência à “modernização conservadora” em curso pela administração municipal e o mais potente espaço de dissidência da cidade. E, principalmente, pelo fato de que os movimentos, grupos e populações até então dissidentes não somente foram envolvidos na concepção do Corredor, mas gradualmente se transformam em agentes do mesmo.

Chegamos portanto à delicada discussão sobre a importância e o papel da Comissão de Acompanhamento, instituída oficialmente no Diário Oficial do Município. Enquanto propositora de ações e como representação da sociedade civil no monitoramento do projeto (e considerando que este é inevitável), a Comissão é uma conquista importantíssima e irrefutável. Entretanto, como componente ativo junto ao desenho urbano desenvolvido pelos arquitetos, a Comissão parece frágil e incapaz de abordar crítica e conceitualmente as decisões arquitetônicas e urbanísticas, resistindo à tarefa primordial de articular outras espacialidades coerentes com a diversidade dos sujeitos envolvidos e para além das suas demandas mais imediatas. E por mais que alguns de seus membros estejam efetivamente envolvidos com o debate cotidiano da cidade e lidem em suas rotinas com experimentações estéticas e espaciais inovadoras e transgressoras, a Comissão, pelo menos até o presente momento, não foi capaz de interferir e engendrar, junto e com os arquitetos, outras possibilidades que não as já conhecidas e equivocadas fórmulas de “maquiagem” urbana.

Assim, nos deparamos com um projeto que reivindica a ocupação e a retomada cidadã dos diversos equipamentos e espaços públicos no centro da cidade através de soluções típicas do ideário oficial do urbanismo contemporâneo, com seu cinismo lúdico e sua violência intrínseca disfarçados de método limpo, justo e tácito. Repaginação de calçadas, anfiteatros, conchas acústicas, fragmentos de ciclovias e muros de vidro (muros de vidro!), legitimam a opção por soluções superficiais, por clichês do que devem ser os espaços públicos e por imaginários importados dos bairros de classe média sem, entretanto, atacar os problemas e as potências locais de forma estruturante.

A predominância dos espaços vazios, dos usos predeterminados e das relações contemplativas – para não dizer submissas e hirerarquizadas – em detrimento de formas de ocupação radicalmente livres, auto-organizadas e de um adensamento realmente democrático e diversificado da região revela claramente o modelo de cidade almejado pelos arquitetos. Mas revela também a falta de compreensão por parte da Comissão da importância do desenho de cada equipamento, cada mobiliário e cada espaço, assim como do significado de cada decisão tomada durante o projeto.

A discussão do projeto arquitetônico propriamente dito e da atuação dos arquitetos não é uma tarefa fácil e nem mesmo confortável, uma vez que perdura na nossa sociedade uma repulsa peculiar ao exercício da crítica e impera, especialmente entre arquitetos, um “código de honra” de não criticar publicamente um projeto de outro arquiteto, principalmente sendo este um amigo ou contemporâneo de faculdade, como é o caso. Entretanto, é necessário que superemos tais barreiras e que avancemos criticamente deixando de lado atitudes corporativistas e ressentimentos pessoais, principalmente quando analisamos e debatemos projetos de interesse público que afetam diretamente a vida de todos os habitantes da cidade.

Porém, mais do que discutir aspectos específicos do projeto apresentado pela equipe de arquitetos, aqui é importante refletirmos sobre dois procedimentos básicos que continuam a reger as práticas arquitetônicas atuais, mesmo aquelas supostamente baseadas na colaboração e participação de outros atores que não os próprios arquitetos e que aparecem de forma preocupante no processo do Corredor Cultural.

O primeiro procedimento é o “atendimento das demandas”. A formação e a prática arquitetônica consolidadas privilegiam a prestação de serviços e direcionam esses profissionais a agirem de forma reativa e sem construirem uma agenda de atuação propositiva para a cidade. Como seus colegas publicitários e designers, os arquitetos vivem, com raríssimas exceções, em função de agendas que lhes são externas e de “briefings” ou “programas de necessidades” formulados previamente por burocratas e marqueteiros, com os quais não necessariamente concordam. Sendo que dentro dessa lógica, um tanto caricata mas também bastante corriqueira, o papel desempenhado pelos arquitetos baseia-se no atendimento mais competente e eficaz das demandas previamente estabelecidas por seus clientes. Pode-se, claro, argumentar que não há problema algum nesse procedimento estabelecido e que atender às demandas da sociedade ou “resolver seus problemas”, como no jargão professoral, é uma tarefa bastante digna e importante.

A questão principal que vale a pena discutir no contexto do Corredor Cultural, entretanto, é que esse atendimento supostamente objetivo e eficaz das demandas que emanam da sociedade, além de nunca ser completamente neutro como se faz parecer, contribui para uma despolitização do ato de projetar e do projeto em si. Tanto por parte dos projetistas quanto dos “projetados”. Pois se toda e qualquer demanda é válida, independente dos interesses, das forças ou das ideologias que as sustentam, teoricamente é sempre possível desenvolver um bom projeto, imparcial e objetivo, sem o engajamento com seus princípios e sem a participação dos sujeitos afetados. Mas as demandas não deveriam ser o fim do projeto em si mas o seu início, constituindo nada mais que diretrizes básicas que guiariam criativamente os diversos sujeitos na extrapolação das expectativas pragmáticas e dos limites tacanhos da lista de exigências inicial.

No caso do projeto do Corredor Cultural, o atendimento às demandas apresentadas por cada grupo nos diversos encontros com os arquitetos se transformou em uma ardilosa armadilha. Se, por um lado, todos os que apresentaram demandas específicas agora se sentem incluídos, tendo sido contemplados com a quadra de basquete ou a calçada de concreto para skate, por outro, esse atendimento imediato, pouco crítico e imaginativo impede que, ao invés de uma absurda quadra no meio do nada e de alguns poucos metros de passeio liso, imaginemos e desejemos uma praça de esportes inteira, com quadras poliesportivas, piscinas diversas, campos gramados, equipamentos esportivos, half-pipes, bowls e pistas completas para skate, patins, bicicletas e o que mais conseguirmos imaginar. Tudo isso hipercentral, público e totalmente gratuito.

Esse mesmo raciocínio se aplicaria a diversas outras demandas atendidas no projeto, como por exemplo o alargamento das calçadas e a diminuição de vagas. Nos contentamos com um pouco mais de passeio enquanto o Corredor Cultural poderia ser um projeto modelo para uma Belo Horizonte completamente sem carros no centro, inclusive na singular rua Sapucaí. Nos contentamos com mais um parque bem ao lado do Parque Municipal sem nos perguntarmos o que deveria ser exatamente um parque urbano hoje e se, ao invés de mais “vazios” controlados, não seria mais oportuno povoar radicalmente o centro com inúmeras atividades, não somente “culturais” e “artísticas”, sobrepostas ao longo das 24 horas do dia…

Obviamente, nenhum projeto jamais será neutro e jamais será uma tradução fiel das expectativas de todos. E é exatamente no procedimento de “tradução” que reside o segundo dilema do projeto participativo do Corredor Cultural. Uma vez instituída a Comissão de Acompanhamento (inovadora e inaugural para os padrões locais de projeto público e participação cidadã), entretanto, como em um processo tipicamente centralizado e fechado, continua cabendo aos arquitetos e somente a eles a tradução de tudo o que foi discutido e sua posterior formalização no isolamento “técnico” do escritório e a partir do repertório estético, político e ideológico que dominam. Em outras palavras, o processo de construção das ações e das prioridades espaciais do Corredor se dá de forma aberta, integrada e participativa, mas o projeto, e em última instância os espaços que serão produzidos, derivam somente das concepções e do trabalho de alguns poucos arquitetos, entendidos pelos participantes como seus legítimos tradutores.

Sempre se pode argumentar, principalmente sendo um deles, que é para isso que servem os arquitetos, assim como todos os demais profissionais e especialistas. Mas o que realmente poderíamos estar discutindo em um processo participativo e aberto como esse, é: como poderiam todos os envolvidos projetarem efetivamente os espaços que imaginam ao invés de centralizarem as decisões e o processo de desenho nas mãos de especialistas? Por que não reinventar o processo de projeto para que este seja realmente participativo, que envolva cada ator em todas as etapas de desenho? Um processo no qual especialistas vários, inclusive arquitetos, compartilhariam seus saberes de forma não hierárquica atuando não mais como tradutores privilegiados, mas simplesmente como colaboradores que pensam e desenham coletivamente junto aos demais.

Infelizmente não é isso o que acontece com o projeto do Corredor Cultural. Enquanto arquitetos se eximem de imaginar outras possibilidades que não as enunciadas pelos “participantes” ou patinam em soluções genéricas para lugares e pessoas particulares, estas abrem mão do seu papel crítico e propositivo no redesenho da cidade assentadas na convicção de que foram finalmente ouvidas e tiveram suas demandas atendidas.

Para sair desse impasse e avançar efetivamente na construção de um projeto coerente com o caráter experimental e engajado de seus atores, a Comissão de Acompanhamento deveria reivindicar um papel ainda mais ativo, fundamentalmente na concepção do projeto, atuando diretamente na injeção de outros parâmetros e expectativas estéticas, espaciais, sociais, políticas, etc. E os arquitetos deveriam propor, voluntariamente, ao invés de um projeto fechado e autorreferente, ferramentas e práticas que desierarquizassem as decisões de projeto permitindo a qualquer cidadão, sem constrangimentos, a chance de se engajar em um exercício de imaginação radical, livre de vícios, amarras e preconceitos formais ou projetuais. Pois se a lista de ações e encaminhamentos apresentada logo no início do encontro aponta para uma cidade democrática, engenhosa e para possibilidades que vão muito além de exigências imediatas de grupos específicos, sem a participação decisiva de todos no desenho do Corredor Cultural, colaborativamente, a Comissão e a sociedade civil continuarão reféns dos cacoetes decorativos e da falta de imaginação dos arquitetos e gestores públicos.

nota

1
O Corredor Cultural Estação das Artes é uma proposta da Fundação Municipal de Cultura (FMC) de Belo Horizonte que tem como objetivo “mudar o visual e fortalecer a vocação artística da região central da cidade. Um levantamento preliminar da Fundação identificou mais de 20 equipamentos e instituições ligadas à área. Inicialmente, o corredor vai abranger desde a Avenida dos Andradas, na altura da Rua Varginha, no Bairro Floresta, até as proximidades do Parque Municipal, além da Rua Sapucaí. A requalificação vai incluir o melhoria dos passeios, iluminação e a sinalização dos prédios e monumentos, além da restauração da antiga hospedaria, na Rua Aarão Reis, futura sede da Escola Livre de Artes”. O projeto orçado em R$ 21,8 milhões deverá ser bancado pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) das Cidades Históricas – que reserva recursos para a capital – e deve ficar pronto para a Copa de 2014.

sobre o autor

Wellington Cançado é arquiteto, professor na UFMG e editor de PISEAGRAMA (www.piseagrama.org)

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