Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
Apresento um poema-caminhada como inventário de uma experiência urbana, traduzindo em linguagem poética estímulos, impressões e devaneios. Junto ao poema, apresento uma breve pesquisa metodológica pensando relações entre literatura, memória e cotidiano.

how to quote

SAVASTANO, Letícia Becker. Caminhar, um ato poético. Minha Cidade, São Paulo, ano 20, n. 239.02, Vitruvius, jun. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/20.239/7765>.


Pont Marie, Paris, França
Foto BikerNormand [Wikimedia Commons]


água cruza’

praça escondida
pra gente
ou viaduto exposto
pra carro

lugares divisores de água

são lugares quando quase
são lugares quando novos
ou quando quase de novo
tudo aquilo que se repete,
e se repete
e se repete
e se repete até fazer
sentido de se inverter e
levar-me a
lugares que ainda
lugares que ainda não existem,
lugares que são nós,
laços,
corpos aguacentos

lugares divisores de água

desconfie dos números, veja
o número 3 da tarde de hoje
é o mesmo número 3 de on_
tem o 3 da tarde de amanhã
que não será
o mesmo apesar
de que se repetem
e se repetem
e se repetem
e se repetem enquanto cidades
nunca deveriam ter sido
mercadoria,
seres humanos também não.

lugares divisores de água

tecnologia de ponta
cabeça, sem saber se
a cidade te carrega,
ou você
carrega ela seria
apenas gramatica gravitacional
que se inverte
infinitamente se quer
isso não seria muito
isso não seria sequer
quase tudo, como são quase
todos

lugares divisores de água

ora,
jogue na cidade quase tudo,
mas lembre:
quase tudo, pensam os humanos,
depende do ponto
de vista
dos seres humanos,uma espécie muito capaz
de fazer embalagens,
castelos e,
falta de sucesso
de seres que são

lugares divisores de água

a cidade ensina:
fissuras podem ser desembrulhadas
com as próprias mãos,
com os próprios olhos,
mas nunca com facas.
com tesouras, talvez. mas saiba que
tesouras produzem
restos
mesmo quando desenhos aguacentos
são feitos por pingos
que já nem sei mais se são
milagres,
ou abandonos.
réquiem,
ou requinto.

 

“A realidade é uma questão de narração” (1) e o poema apresentado tem a intenção de inventariar, mas também de inventar. Inventar inventariando, inventariar inventando. Neste exercício de comunicação, registro e narrativa tenho por objetivo transformar caminhadas em atos poéticos, ou ser transformada poeticamente por atos de caminhada. Sem identificar quanto tempo, nem onde ou quando caminhei, deixo abertas as margens da imaginação, uma vez que o que importa aqui é a tradução do fluxo de pensamento da interação do corpo com o lugar. É uma caminhada cotidiana, que pode ter acontecido a qualquer dia e em qualquer lugar.

Quantos dias – quotus dies – são necessários para construir o cotidiano? O cotidiano, um conjunto de banalidades, guarda em si diversas possibilidades de interpretações, vivências e imaginações. Um fluxo incessante. E como narrar esse fluxo que nos atinge objetiva, consciente, inconsciente e subjetivamente? Isso pode ser feito de diversas maneiras, mas prescinde da alteridade (a articulações e interações com o outro) e da tradução. Segundo Alessia de Biase, a tradução é uma questão de experiência e de negociação. Trata-se de uma rearticulação daquilo que é apreendido pelo corpo em contato com a cidade (um corpo cheio de outros corpos) e da comunicação.

Literatura, cotidianos e memória enquanto práticas estéticas

Apesar de o exercício que apresento partir de uma arquiteta e urbanista sem pretensões literárias, mas sim como dispositivo de apreensão e ação na cidade – com nossos corpos-cidade-, são vários os exemplos de escritores/as a partir das mais variadas abordagens que tem no cotidiano o seu locus de imaginação, investigação e criação. Podemos começar com leituras de Manoel de Barros, um literato transformador de minúsculas experiências cotidianas que recolhe palavras e objetos, tirando-as de sua aplicação convencional e sentido esperado (2). Ressignificadas, elas ganham nova vida em poesia.

“Nasci para administrar o à toa
O em vão
O inútil
Pertenço de fazer imagens
Opero por semelhanças
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
De pessoas com rãs
De pessoas com pedras
Etc. etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidades para clarezas
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral” (3).

Outro conhecido investigador do cotidiano é Georges Perec. Além de relatos do interior de sua casa, como por exemplo as histórias sobre objetos de sua mesa de trabalho, Perec também realiza relatos cotidianos em espaços públicos registrando, exaustivamente, vivências urbanas. Em tentativas de esgotamento de um local parisiense, Georges Perec se instala em lugares no entorno da Praça Saint-Suplice para registrar tudo o que acontecia ao alcance de seu olhar. Um voyer urbano que minusculariza a realidade’ (4). Perec não seleciona – conscientemente – o que vai registrar e o faz sem hierarquia, apresentando os fatos misturados a algumas de suas reflexões sobre essas banalidades.

Marília Garcia, uma poeta contemporânea brasileira, é leitora de Perec. Garcia toma, com frequência, a cidade como perspectiva de seus poemas problematizando os modos de expressão e representação interagindo com os lugares de maneira auto reflexiva. Seus poemas são como caminhadas atentas as paragens e aos intervalos. Em seu longo poema-ensaio “Parque das ruínas”, Marília Garcia compartilha três experiências sobre ver e olhar. A primeira é sobre as fotografias microscópicas de lágrimas – realizada pela artista americana Rose-lynn Fisher –, como se fossem cartografias.

“Em ‘topografia das lagrimas’
a artista pegou uma lagrima colocou sobre uma lâmina
e deixou secar depois pôs a lâmina
em um microscópio para ver
[...]
essas imagens
que parecem feitas de longe
mostram algo que está muito muito
perto
tão perto
perto demais” (5).

A segunda experiência de partilha dos seus fluxos de pensamentos é sobre sua visita a um museu chamado “chácara do céu”. Marília foi ao museu “chácara do céu” para visitar uma exposição de Jean-Baptiste Debret quando, em determinado momento, decidiu tomar um café. Mas lá não tinha café e ela saiu do museu “chácara do céu” e se dirigiu ao museu ao lado para tomar um café. O museu ao lado se chamava “parque das ruínas” e fez ela ficar

“Pensando em como fazer para passar do céu
para as ruínas e depois voltar ao céu
os dois museus ficam um ao lado do outro
-têm entre els apenas uma passarela de ligação –
por que um tinha sido batizado
como céu e o outro como ruína?” (6).

A terceira experiência foi realizada em Paris quando Marília “queria entender alguma coisa que não sabia exatamente o que era” e decidiu começar um diário que tinha apenas uma regra:

“Todos os dias deveria tirar uma fotografia
do mesmo lugar/na mesma hora
e partir dela para fazer o diário
a única regra era essa o resto era livre
e girava em torno da pergunta:
como ver o lugar?” (7).

O lugar escolhido para as fotografias foi a Pont Marie, e assim a poeta inicia o “diário sentimental da pont marie”.

“Queria fazer este diário para tentar entender alguma coisa
e eu fiquei me perguntando
é possível ver este lugar?
não queria ver algo além mas o próprio lugar
talvez com a foto pudesse recortar um instante
um fotograma

sempre na vida tinha tentado pular etapas
apagar o meio o entre o processo
como fazer para atravessar e passar pelas coisas?

todos os dias lembrava de uma expressão em francês
avoir lieu ter lugar:

o lugar faz parte da experiência
e do acontecimento
[mesmo que não aconteça nada]
georges perec define uma categoria
que ele chama de infraordinário
[...]

o extraordinário comove fica evidente:
guerra desastres morte

mas como ver o infraordinário?” (8).

Olhemos, agora, para André Breton em seu livro intitulado Nadja que, com sua escrita surrealista, divisa “um elo secreto entre lugares e palavra, [...] [e] vai revelando não só a natureza do passeio surreal, mas também o intento de um livro que pretende explorar os pontos de contato entre a vida e o sonho” (9). Como apresenta Eliane Robert Moraes, o caminhante “passa do plano real ao imaginário como quem troca de calçada e se deixa levar por forças incógnitas, alheias a seu entendimento”.

O registro afetivo de suas caminhadas e narrativas, diz Breton, se pretende exclusivamente a ele – o que é, sem dúvida, o essencial-, e o que representa, no dia-a-dia, tão impessoal quanto possível, a nada. Em consonância com André Breton, dou início aos meus textos e caminhadas da mesma maneira que ele começa Nadja, perguntando: quem sou? (10).

Errância como experiência literária; experiência literária como sobrevivência

Os errantes são aqueles que realizam errâncias urbanas, experiências urbanas específicas, a experiência errática das cidades. A experiência errática afirma-se como possibilidade de experiência urbana, uma possibilidade de crítica, resistência ou insurgência contra a ideia do empobrecimento, perda ou destruições da experiência a partir da modernidade (11).

Tomando o fluxo-cidade com relação de causa e consequência com o meu fluxo pensamento, me aproprio da linguagem poética (sem preocupação com o estilo) para fazer tal tradução, registrar e comunicar este deslocamento tático de entrega e errância. As experiências erráticas, diz Paola Berenstein Jacques, são possibilidades de experiência da alteridade urbana e dispositivos de apreensão e ação, movimentos de micro-resistências. Micro resistências, re-existências no dia-a-dia e inter-relação dos mínimos acontecimentos, que são todos os acontecimentos.

A prática da errância, pode ser pensada como instrumento da experiência de alteridade na cidade, ferramenta subjetiva e singular – contrário de um método cartesiano. A errância urbana é uma apologia da experiência da cidade, que pode ser praticada por qualquer um, mas o errante a pratica de forma voluntária. [...] O errante não vê a cidade somente de cima, a partir da visão de uma mapa, mas a experimente da dentro; ele inventa sua própria cartografia a partir de sua experiência itinerante (12).

E é por atuar no desvio de corpo confundido com cidade, corpo-cidade entregue aos próprios devaneios enquanto espírito inquieto que opto por realizar minhas cartografias psicogeograficas (13) em forma de poesia. A poesia, que é também uma tática de dispositivo que desloca situações familiares para modos não esperados. Poesias que juntam cidades enquanto desvios sem nunca idenficá-las, e nem por isso deixar de idenficá-las. Trata-se de um inventário-poesia, cujo formato aparece enquanto tentativa de (des)organizar a experiência de meu corpo com a cidade e estabelecer, entre nós, um diálogo sensorial. Por meio de poesias-desvios, que se juntam com meu corpo, que se juntam com a cidade e com nosso corpo-cidade; Desvios onde a cidade deixa de existir e existe de novo, e de novo, e de novo, repetidamente, em movimento infinito.

Tenho neste movimento um modo de inserção e relação com a cidade. É um gesto do encontro que retoma a poesia enquanto fazer, enquanto fazer vital. Assim faço caminhada, faço poesia. Caminho enquanto ato poético e enquanto ato de resistência ao “empobrecimento da experiência urbana”, ao colocar meu corpo na cidade. Um corpo como lugar inescapável mas que torna nosso movimento possível, junto a toda essa percepção do mundo externo (14).

“E se, por sorte, eu vivesse com ele (o corpo) em uma espécie de familiaridade gasta, como se com uma sombra, ou com as coisas de todos os dias que no fim das contas não enxergo mais e que a vida embaçou; como as chaminés, os tetos que, todas as tardes, se ondulam diante de minha janela? (15).

notas

1
BIASE, Alessia de. Aljava com flechas pontiagudas debaixo do braço – a tradução entre narração e interpretação. In JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dultra; DRUMMOND, Washington (Org.). Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Tomo III: Alteridade imagem etnografia. Salvador, Edufba, 2015.

2
CANTON, Katia. Tempo e memória. São Paulo, Martins Fontes, 2010.

3
BARROS, Manoel de. O meu quintal é maior que o mundo: Antologia. Rio de Janeiro, Objetiva, 2015.

4
LUIS, Ricardo. In PEREC, Georges. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. São Paulo, Gustavo Gilli, 2016.

5
GARCIA, Marília. Parque das ruinas. São Paulo, LunaParq, 2018

6
Idem, ibidem.

7
Idem, ibidem.

8
Idem, ibidem.

9
MORAES, Eliane R. In BRETON, André. Nadja. São Paulo, Cosac Naify, 2007.

10
BRETON, André. Nadja (op. cit.).

11
JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador, Edufba, 2014.

12
Idem, ibidem.

13
PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCOSSIA, Liliana da (Org). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre, Sulina, 2015.

14
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo, Editora N-1, 2013

15
Idem, ibidem.

sobre a autora

Letícia Becker Savastano é arquiteta e urbanista (FAU Mackenzie, 2017), e mestranda (FAU USP, 2019_). Estuda articulações entre arquitetura, cidades, imaginários, memória, antropologia da imagem e artes visuais. Trabalhou como assistente editorial na Revista Monolito (2014-2018) e atualmente integra o coletivo editorial da Revista Rasante.

comments

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided