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LEONIDIO, Otavio. Os significados da história. Resenhas Online, São Paulo, ano 01, n. 003.02, Vitruvius, mar. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.003/3246>.


"edifício que, todavia, de duas formas existia: na de edifício em que se habita e de edifício que nos habita."
João Cabral de Mello Neto, Acompanhando Max Bense em sua visita a Brasília, 1961

Dando seqüência à série Espaços da Arte Brasileira, concebida e coordenada pelo crítico Rodrigo Naves, a editora Cosac & Naify acaba de publicar Lucio Costa, livro de estréia do arquiteto Guilherme Wisnik, que alguns já conheciam através da revista Caramelo (2). Assim, aos títulos já publicados vem juntar-se agora este tão esperado estudo sobre o personagem central da chamada “arquitetura moderna brasileira”.

À maneira do que já ocorrera com Joaquim Guedes, de Mônica Junqueira de Camargo, Vilanova Artigas, de João Masao Kamita, e Vital Brazil, de Roberto Conduru (mas também com Jorge Machado Moreira, organizado por Jorge Czajkowski e publicado pelo Centro de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro em 1999), este Lucio Costa é composto por um estudo crítico, um portfolio contendo uma seleção de obras, uma cronologia e uma bibliografia básica. Em vista da insipiência de nossa produção editorial, trata-se de desenho bastante adequado, que permite coexistirem num mesmo volume a complexidade (tantas vezes hermética para o público leigo) do ensaio e da análise crítica e o didatismo próprio às obras ditas “de divulgação”.

Portfolio, cronologia e bibliografia

No portfolio estão reunidas 15 obras de Lucio Costa, ilustradas tanto por fotos de época e desenhos originais quanto por “redesenhos” de documentos técnicos (plantas-baixas, seções etc) e fotografias atuais – com destaque, neste caso, para os trabalhos de Nelson Kon e Elaine Ramos, esta igualmente responsável pelo elegante projeto gráfico do título. Os redesenhos, sobretudo, dizem do caráter criterioso do trabalho, e em pelo menos um caso (Museu das Missões, 1937), a ênfase gráfica dada a elementos, digamos, ocultos do projeto, facilita, ou melhor, possibilita mesmo a plena compreensão da operação arquitetônica em questão – a qual, como afirma Guilherme Wisnik amparado nos trabalhos de Ricardo Rocha e Maturino Luz, “contém uma dimensão demonstrativa, a partir da qual um simples abrigo é capaz de recriar todo o ambiente urbano”. (p. 17)

A seleção proposta contempla de singelos projetos residenciais até planos de urbanismo, apresentados em ordem cronológica. Como não poderia deixar de ser, ao lado de obras construídas, estão projetos que, ou não foram executados, ou resultaram francamente adulterados, como no caso do plano de urbanização da Barra da Tijuca. Da seleção, contudo, não consta nenhum exemplar do chamado “período eclético-acadêmico” do arquiteto, identificado com sua produção anterior a 1930. Obviamente, optou-se aqui por dar exclusividade ao Lucio Costa “moderno” (com aspas, naturalmente), aquele que se converte à “boa causa” da arquitetura moderna, em detrimento do arquiteto eclético – e bem sucedido, vale lembrar – dos anos 20. A opção, contudo, é questionável, sobretudo numa seção que, afinal de contas, cobre mais de cinqüenta anos da produção costiana, e isso no âmbito de uma publicação que, quer queira, quer não, tem uma franca vocação didática, e que – somos informados na contracapa dos títulos que compuseram sua primeira fornada –, se quer “atenta aos nexos possíveis em nosso meio cultural”. Nesse sentido, deve ser destacada a cronologia preparada por Joana Mello – clara, didática, sucinta, mas nem por isso desprovida de observações inteligentes e sugestivas. De par com a bibliografia básica apresentada, é um complemento mais que oportuno ao portfolio, fazendo do conjunto importante instrumento para um primeiro contato com o itinerário e a obra de Lucio Costa.

O ensaio

O texto de Guilherme Wisnik, intitulado “Lucio Costa: entre o empenho e a reserva” alterna, ora de maneira coordenada, ora não, análises de projetos arquitetônicos e urbanísticos com interpretações que procuram atribuir significado à obra costiana, vale dizer, tanto a seus projetos e enunciados quanto às suas ações. É deste último aspecto, sobretudo, que iremos nos ocupar a seguir (3).

Muito tem sido ensaiado sobre o significado da obra de Lucio Costa. Para Carlos Comas, por exemplo, “[...] a proposta de Lucio Costa com relação à identidade da arquitetura moderna não era mais que uma resposta elegante a duas questões que obcecavam as elites brasileiras dos anos 20: de um lado a afirmação da identidade da cultura nacional, de outro a integração dessa cultura à modernidade internacional” (4). Para o crítico Roberto Schwarz, contudo, “o esquema de Lucio Costa é discretamente marxista [...]” (5). Já para Adauto Lúcio Cardoso, em Brasília “[...] Lucio Costa desenvolve e sintetiza, através do urbanismo, o projeto modernista de Mario de Andrade” (6). São exemplos de interpretações que, de uma forma ou de outra – mas quase sempre por meio de um gênero específico, o ensaio – procuram alcançar o significado da obra de Lucio Costa.

O mesmo caminho foi seguido por Guilherme Wisnik, que, no entanto, tencionou o gênero a ponto de prejudicar o caráter científico de sua empreitada (e não custa lembrar, com licença dos pós-modernos, que é isso, sobretudo, o que está em jogo aqui). Explica-se: ainda que seja esse um caminho incontornável, nesse como em tantos outros casos, a eficácia do ensaio está necessariamente vinculada à sua fundamentação histórica, não sendo mero acaso que dentre os melhores de nossos intérpretes – aqueles responsáveis por descobertas fundamentais a respeito de nossa realidade sócio-cultural, às quais ainda hoje recorremos em nossa lida com o mundo real – estejam historiadores por formação, contingência ou eleição, como são os casos de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e... Lucio Costa! O problema nesse sentido é que, mesmo supondo-se “uma história já trilhada da arquitetura moderna no Brasil” (p. 13. Grifo meu), no nosso caso, a falta de uma historiografia solidamente constituída, de uma tradição com a qual possam dialogar, acaba impondo aos nossos ensaístas a necessidade de, simultaneamente, fazer história.

Para mencionar um único exemplo da insipiência dessa historiografia, citemos a idéia, endossada por Guilherme Wisnik com ressalvas um tanto tímidas, acerca de “uma importante singularidade da história arquitetônica brasileira: a da conexão entre modernidade e tradição”. (p. 13) Ora, como já nos havia advertido Carlos A. Ferreira Martins, e isso já faz alguns anos, essa não teria sido “uma especificidade, uma originalidade do Brasil” (7). Aliás, tamanhos parecem ser os casos análogos ao nosso – e tamanha a disponibilidade do “estilo moderno” a integrar-se às construções nacionais – que mais recentemente Jean-Louis Cohen, em seminário realizado pelo PROURB/FAU-UFRJ, chegou mesmo a falar, um pouco a modo de provocação, de um national style, pondo à prova a idéia de um onipresente international style, sobretudo como este é – convenientemente – descrito por Kenneth Frampton no seu Modern architecture (8).

Talvez possa ser objetado que o ensaio de Guilherme Wisnik, todavia, não é nem pretende ser um estudo propriamente historiográfico. Contudo, quem quer que se proponha a responder a perguntas como “Que razões teriam levado Lucio Costa, de uma hora para outra, a abraçar o modernismo arquitetônico, desencadeando, com sua breve, porém decisiva, passagem pela direção da ENBA [Escola Nacional de Belas Artes], a grande reviravolta que abriria caminho para toda a reorientação estilística que se seguiu durante o século? ” (p. 14), estará, quer queira, quer não, fazendo história. O que significa dizer, deverá proceder atento aos limites que a abordagem histórica obrigatoriamente impõe, a começar pela observância das especificidades que caracterizam os agentes em questão, as quais se vinculam ao contexto sócio cultural em que estes empreendem suas ações: as questões a que procuravam dar resposta; o que acreditavam estar fazendo através de seus enunciados e ações; as intenções (no sentido que Quentin Skinner empresta ao termo) que acompanham tais enunciados. Caso contrário, a eficácia da busca pelos porquês – e pelos significados – da história estará inevitavelmente comprometida.

Destacaria aqui uma única especificidade que, me parece, foi apenas parcialmente considerada no estudo de Guilherme Wisnik (mas não apenas neste), a saber, o fato de Lucio Costa ser, afinal de contas, um arquiteto moderno.

Dizemos parcialmente porque Wisnik não deixa de acusar, “como principal instrumento de projeto e intelecção” em Lucio Costa, a presença de um “raciocínio moderno sobre a base vernacular”, manifesto em “sua maneira particular e erudita de combinar referências variadas”. Contudo, e não obstante afirmar que, em Lucio Costa, o emprego de elementos vernaculares “não realiza uma simples alusão formal, mas busca a reposição de um modelo criado por uma sociabilidade na qual o estar e a cozinha de alguma maneira se misturam no centro da casa” – modelo portanto retirado ao passado –, o que se percebe é que o “pensamento” ou “raciocínio moderno” em questão é, aqui, antes um esquema formal-compositivo. Daí a afirmação de que tal “ordem de especulações [...] transita entre o moderno e o vernacular”, e de que o projeto do Parque Guinle (Rio de Janeiro, 1948), tendo como base “um partido francamente moderno”, revelaria “uma unidade problemática” própria de uma “dupla natureza”. (p. 31-3. Grifos meus.)

Ora, há um outro aspecto da estética moderna que parece ter sido excessivamente relativizado na análise de Wisnik, aspecto este mais ético do que formal/compositivo. Como afirma Giulio Carlo Argan, dentre os princípios gerais que constituem o que chamou de “a ética fundamental ou deontologia da arquitetura moderna” está “a concepção da arquitetura e da produção industrial qualificada como fatores condicionantes do progresso social e da educação democrática e social”. Daí porque, mesmo na crítica veemente que faz do caráter, digamos, paternalista da ação de Le Corbusier, Argan reconheça que a sua é uma conduta “antes de mais nada política, no sentido mais elevado do termo, uma grande política, generosa e esclarecida, do urbanismo e da arquitetura” (9). Assim sendo, ainda que fosse correta – e temos dúvidas de que seja – a hipótese de que Lucio Costa estivesse “consciente da inviabilidade e até, de alguma maneira, da inadequação de almejar aqui a constituição de uma modernidade social estrita, que se refletiria na consolidação de uma esfera pública cujo modelo estava na Europa [...]” (p. 12), e ainda que fosse esta – a “consolidação de uma esfera pública cujo modelo estava na Europa” – a questão central a movê-lo e mobilizá-lo, ainda assim, a afirmação de que a sua é uma ação política só pode ser válida na medida em que se conceda que, na ocorrência, esta ação parte do pressuposto que o projeto arquitetônico e urbanístico é um instrumento eficaz de transformação da realidade. Assim, entre o Lucio Costa que “admite, em certas ocasiões, o lapso entre a intenção edificante do projeto e a realidade, que a solapa” e aquele cujo “vínculo concreto com a formalização, que positiva as relações engendradas pela profissão, passa pelo filtro de um permanente travo” (p. 12) existe uma distância que só pode ser vencida, como foi, através da excessiva relativização do caráter francamente utópico do construtivismo costiano – relativização evidenciada, por exemplo, na ênfase dada à sua “atitude irônica”, ao seu “amadorismo” e à sua “diletância” – “traço de afastamento crítico que o aproxima de Marcel Duchamp”. (p. 44-5)

Só a excessiva relativização dessa especificidade pode explicar, por exemplo, a interpretação de Guilherme Wisnik para a ação de Lucio Costa em Brasília. Operando aqui a partir de idéias do crítico Mário Pedrosa, o autor argumenta que, diferentemente do arquiteto (que buscara atar duas pontas de nossa história), o Lucio Costa urbanista de Brasília procederia à maneira do colonizador português, que, supondo a inexistência de “culturas autóctones fortes” e não vendo nenhuma “identidade cultural a conservar” (p. 26), optara pela ruptura. Nessa perspectiva, “em vista da imaturidade e do anacronismo do programa proposto, assumir a insularidade da capital, seu caráter de oásis” seria, afirma Wisnik, “uma maneira de explicitar e problematizar uma vocação inata da nossa cultura”. Ou seja, “o que estaria implícito nessa retomada” (seu significado, portanto) seria, não um élan construtivo, senão o avesso disso, expresso na vontade de explicitar nossos dilemas e arcaísmos. Mais anti-projeto que projeto, a Brasília de Lucio Costa seria, aos olhos de Wisnik, uma espécie de espelho mágico e incômodo, por meio do qual seríamos obrigados a enxergar nossas mazelas: “[...] o Brasil condenado ao moderno só se torna igual a si mesmo à medida que é capaz de estranhar-se, olhando de um ponto de vista avançado para o horizonte desimpedido e desencantado do cerrado-sertão. Aí reside o poder de desvelamento persuasivo de Brasília”. (p. 27.)

A seção dedicada a Brasília aponta ainda para uma outra característica marcante do estudo de Wisnik: a opção do autor por operar, no mais das vezes, buscando conciliar as interpretações dos comentadores da obra costiana, com destaque para os trabalhos de Sophia Telles e Otília Arantes. Por vezes, ele logra estender as interpretações desses comentadores, como na passagem em que trata do Lucio Costa bricoleur. Aqui, partindo do pioneiro ensaio de Sophia Telles (10), que trata de um certo caráter literário da obra de Costa, Wisnik explora de maneira original a categoria levistraussiana proposta em O Pensamento Selvagem. Novamente, contudo, o autor pouco esclarece sobre o significado propriamente histórico da bricolagem costiana: que especificidades poderia apresentar, por exemplo, vis-à-vis do bricolage “essencialmente icônico” que Alan Colquhoun identificara em certos procedimentos projetuais de Le Corbusier? (11) Ou, por outra, que lugar assumiria no âmbito da distinção proposta por Mario de Andrade entre “síntese” e “enumeração escolhida” – questão que está na origem de sua divergência da brasilidade antropofágica oswaldiana – ? (12)

Trata-se, neste caso, de uma questão crucial, que chama a atenção para a necessidade de uma eventual redefinição do lugar – e do significado – da obra de Lucio Costa no âmbito de nosso modernismo (aqui, portanto, percebe-se que o arquiteto moderno é também modernista). Afinal, diferentemente do que tem sido dito ou apenas sugerido, um dos principais significados da operação costiana reside, não apenas em uma eventual subscrição desse ou daquele projeto e sua posterior adaptação para o universo da arquitetura (vem daí a idéia de “influência” desse ou daquele modernista, mas quase sempre de Mario de Andrade, no “pensamento” de Lucio Costa, que, por isso mesmo acaba parecendo de segunda-mão), mas também, e sobretudo, em sua retomada de uma certa tradição hermenêutica anterior às formulações e aos projetos desse ou daquele modernista – tradição identificada com o que Antonio Candido chamou de “dialética do localismo e do cosmopolitismo” (13). Ocioso dizer que, desse ponto de vista, o enunciado costiano ganha necessariamente outro status, e portanto outro significado.

Especialmente produtivos são os momentos em que Guilherme Wisnik deixa momentaneamente de lado essa ou aquela interpretação e lança mão tanto de seu tirocínio crítico quanto de sua sensibilidade estética e de sua cultura literária. É o caso da passagem em que faz uso de excertos de textos de Clarice Lispector e de Guimarães Rosa buscando novas chaves para penetrar “na multiplicidade de significações suscitadas por Brasília”. (p. 24) A afirmação de que “a ‘grande cidade’ que começava a fazer-se no semi-ermo do chapadão, aquela que ia ser ‘a mais levantada do mundo’ [Rosa], impõe uma necessidade de transformação ao sertão rosiano, que, num trabalho de luto, também se abre para uma ‘esperança ao não sabido, ao mais’” (p. 24), constitui desde logo excelente mote para um estudo mais sistemático das relações entre Brasília e uma outra modernidade, porventura presente nas prosas de Clarice e Rosa, quem sabe se na poesia de João Cabral de Mello Neto.

No mais das vezes, contudo, o espírito de conciliação que percebemos ao longo do texto acaba imprimindo à fala do autor um aspecto excessivamente polifônico. Não surpreende nesse sentido, aliás, que da narrativa de Wisnik resulte um Lucio Costa marcado sobretudo pela... “contradição” e pela “ambigüidade” (p. 8), pelas constantes “idas e vindas” (p. 11), pela alternância entre “empenho e reserva” (título), pela “ambivalência” e pela “multiplicidade” (p. 13), e que “encarna um sem número de ambivalências”. (p. 7) Ora, ainda que cumpra reconhecer que, de uma forma geral, a nossa experiência do moderno (mas não apenas a nossa) é caracterizada por impasses e contradições, muitos indícios apontam, no âmbito do locus identificado com o universo da arquitetura, para uma vivência em certa medida imune ao “trauma do moderno” que Ronaldo Brito identificou no caso das artes plásticas (14). Daí nossa relutância em aceitar algumas das teses centrais propostas por Wisnik: que “suas [de Lucio Costa] idas e vindas revelam, ao longo do tempo, menos inseguranças pessoais do que dúvidas criativas, chegando a um tal ponto de lucidez que se aproximam da ironia cáustica e, pela mesma via, de uma sorte de imobilismo”; que a sua se aproximaria, por vezes, “da condição incômoda do sujeito da poesia de Drummond”, que, vendo um operário caminhar em direção ao mar, tem “vergonha e vontade de encará-lo” (p. 11-2. Grifos meus.); e que, no caso específico de Brasília, “não há como não ver, nas atitudes reticentes de Lucio Costa, apesar de sua obstinada capacidade de defender a cidade, a manifestação de um incômodo desconforto diante das contradições implicadas” nos compromissos estabelecidos “entre a vanguarda artística e um Estado universalizador, na periferia do capitalismo”. (p. 30. Grifos meus.) Compare-se Lucio Costa a um Oswald de Andrade, por exemplo, e veremos então o que é “um intelectual estilhaçado pelas contradições que os anos 30 punham às claras num país que se debatia entre a herança agrária e a nascente ascensão burguesa” (15).

Com efeito, diferentemente das artes plásticas e da literatura, tanto a experiência da “arquitetura moderna brasileira” (agora entendida como fenômeno sócio-cultural que extrapola o universo mais ou menos restrito da arquitetura e do urbanismo), quanto um certo enunciado que a acompanha pari passu (enunciado cuja eficácia e cujo alcance, de maneira análoga, não se restringe apenas ao universo da arquitetura, mas que se incorpora a e (re)constitui uma “comunidade discursiva”, a qual não respeita fronteiras disciplinares, sendo, ao contrário, marcada por constantes trocas, empréstimos e apropriações interdisciplinares, basta pensar no diálogo Lucio Costa-Gilberto Freyre), ainda que não livres de contradições, apontam, ao que tudo indica, para uma formulação de nossa cultura a partir da qual alguns dos dilemas associados à tradição hermenêutica a que nos referíamos acima puderam, de alguma maneira, ser equacionados. Daí o recorrente bem-estar característico dessa “arquitetura moderna brasileira” heroicamente celebrada, narrada, historiada, e mesmo cantada em prosa e em verso. O significado, as dimensões e, sobretudo, a importância (16), ontem e hoje, desse aspecto do sucesso da “arquitetura moderna brasileira” (mas também o papel que nele desempenham os enunciados de Lucio Costa) são questões que restam ainda por ser esclarecidas, ao menos do ponto de vista de uma história social que não veja as representações coletivas (e a arte e a arquitetura) como meros epifenômenos – manifestações epidérmicas de uma realidade sócio-econômica tida desde logo como mais “real”.

Nesse sentido, caberia dizer que, do ponto de vista da historiografia, o trabalho de Guilherme Wisnik tem o grande mérito de não ceder a uma certa vaga, digamos, denunciatória, manifesta em alguns estudos recentes, muitas vezes mais preocupados em desmascarar as inverdades e os interesses explicita ou implicitamente presentes nas narrativas “heróicas” da “arquitetura moderna brasileira” do que em compreender os contextos sócio-culturais (históricos, portanto) em que tais narrativas obtiveram legitimação.

Trata-se de qualidade fundamental para quem quer que se proponha a desvendar os significados da história (17).

notas

1
Uma versão variante deste texto será publicada na revista ANIMA: História, Teoria e Cultura nº 4, Rio de Janeiro/Curitiba: PUC-Rio-Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura/ Casa da Imagem. (c) Não pode ser reproduzido total ou parcialmente sem autorização por escrito do autor.

2
A Caramelo é uma realização do Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo/FAU-USP. Além de ter sido integrante da equipe editorial, Wisnik é, entre outros, co-autor de “O percurso do ensino na FAU”, Caramelo 6 (1993).

3
Esta resenha, portanto, não pretende esgotar a análise do ensaio de Wisnik (tampouco do livro como um todo), apenas chamar a atenção para questões que, aos olhos do resenhista, pareceram merecedoras de debate.

4
Carlos Eduardo Dias COMAS, “Uma certa arquitetura moderna brasileira: experiência a re-conhecer”, Arquitetura Revista nº 5, 1987, p. 24.

5
Roberto SCHWARZ, “O progresso antigamente”. In: _____. Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

6
Adauto Lúcio CARDOSO, “Construindo a utopia: Lucio Costa e o pensamento urbanístico no Brasil”, Espaços e Debates nº 27, 1989, p. 76.

7
Carlos Alberto F. MARTINS, “A constituição da trama historiográfica da arquitetura moderna brasileira”, Revista da Pós - número especial: o estudo da história na formação do arquiteto, São Paulo, FAU-USP. [1994]

8
Kenneth FRAMPTON. Modern architecture: a critical history. London: Thames and Hudson, 1987.

9
Giulio Carlo ARGAN. Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1992, p. 263-8. Grifos meus.

10
Sophia S. TELLES, “Lucio Costa: monumentalidade e intimismo”, Novos Estudos CEBRAP Nº 25, outubro de 1989, p. 75-94.

11
Alan COLQUHOUN. “Arquitectura e ingeniería: Le Corbusier y la paradoja de la razón”. In _____. Modernidad y tradición clássica. Madrid: Júcar, p. 119-54.

12
Sobre esta questão ver Eduardo Jardim de MORAES, Limites do moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999; Margarida de Souza NEVES, “Da maloca do Tietê ao Império do Mato Virgem. Mário de Andrade: roteiros e descobrimentos”. In CHALHOUB, Sidney & PEREIRA, Leonardo Affonso de M (org.). A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 265-300.

13
Antonio CANDIDO, “Literatura e cultura de 1900 a 1945”. In _____. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Ed. Nacional, 1976. Sobre esta tradição e a inscrição, nela, do enunciado costiano confrontar com Paulo e Otília ARANTES, Sentido da Formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lucio Costa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

14
Ronaldo BRITO, “A Semana de 22: o trauma do moderno” in TOLIPAN, Sérgio et alii. Sete ensaios sobre o modernismo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983.

15
João Alexandre BARBOSA, “A modernidade do romance”. O Livro do Seminário: ensaios – Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, 1982. São Paulo: LR Editores ltda, 1983.

16
De imediato, poderíamos mencionar – citando em outra chave um autor com o qual Wisnik opera – o papel representado pela “arquitetura moderna brasileira” nos anos 30 e 40 para a consolidação, a partir dos anos 50, de uma certa utopia que, não obstante o Golpe de 1964, “continuou e continua ressurgindo teimosa, nas músicas, nos livros, nos projetos arquitetônicos, nas obras de arte, nos campos de futebol”, e que poderia ser identificada com a “esperança de uma modernidade leve”. Lorenzo MAMMI, “Uma promessa ainda não cumprida”, Folha de S. Paulo, caderno Mais!, 10/12/2000. Aquele “Azul e Branco” quase obsessivo, repetido 14 vezes ao final do “Poema em louvor do edifício do Ministério da Educação”, de Vinícius de Moraes, dá bem a medida do que o “sucesso” da arquitetura moderna brasileira pode ter representado para sua geração, e para a arte que ela produziu.

17
Agradeço a leitura e os comentários de Ana Luiza Nobre, João Masao Kamita, Marcelo Gantus Jasmin e Roberto Conduru.

sobre o autor

Otavio Leonídio é arquiteto, doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio, onde faz tese sobre Lucio Costa

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