Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

reviews online ISSN 2175-6694

Rua de San Juan, c. 1898
Foto divulgação

abstracts

how to quote

SOTOMAYOR, Aurea María. Além do olhar: “San Juan tras la fachada”, de Edwin R. Quiles Rodríguez. Resenhas Online, São Paulo, ano 04, n. 040.04, Vitruvius, abr. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.040/3160>.


Quem termina de ler este maravilhoso livro, sente a impressão de que leu um texto escrito por alguém que ama a cidade, sua história e, principalmente, seus habitantes. O autor, o arquiteto Edwin R. Quiles, examina as formas diversas em que as pessoas, agentes ativos da mudança na cidade e seus subúrbios, se apropriam do espaço como território ou como forma, na cabana taína de palha, na casa yoruba, no barracão multifamiliar dos peões, na casinha de madeira ou de alvenaria, no estilo híbrido que unifica estruturas e materiais. A paixão com que o autor olha para este espaço e com que se apropria afetiva e racionalmente permeia a forma de sua escritura: a intensidade transpira deste texto que se ocupa do povoador e de seu espaço, a saber, o porto-riquenho que habita San Juan e os subúrbios que nascem no entorno deste, entre os séculos dezesseis e o início do século vinte.

O olhar de Quiles inclui a todos: conquistadores, trabalhadores, mulheres, artesãos, comerciantes brancos e espanhóis, especuladores de terra, proprietárias negras, lavadeiras e costureiras, pequenos burgueses, capitalistas, mulatos, inquilinos, clérigos, arrendadores, proprietários de casas, escravos fugitivos, proprietários de cocais, de plantação de mangues, de terras baixas, de San Juan intramuros, etc. Por aqui ronda também o Italo Calvino do texto maravilhoso que é As cidades invisíveis, em especial quando o autor rememora a diferença entre as palavras e os gestos na fala de Marco Pólo ao visitar um lugar: as palavras servem para descrever os lugares, mas os gestos e os olhares descortinam o que não se pode dizer com palavras. Parece-me que, em grande parte, esse é o significado que tem as ilustrações profusas deste livro: fotos, mapas, diagramas, desenhos, planos, vistas, fragmentos de serigrafias, pinturas, paisagens. A história ilustrada vem acompanhada da representação das pessoas que vivem em San Juan. Aí se encontra o que Quiles não pode ou não quer expressar com palavras, porque em última instância se trata de observar longa, paciente e profundamente um objeto de amor. Quem se aproximar deste livro, portanto, terminará observando da mesma forma, e com isso já terá obtido bastante.

Muito mais do que a cidade murada, o que recordo e vejo neste texto é a água. Água por todas partes: água em La Puntilla, no mar de la Perla, água da Puente Dos Hermanos, águas da Laguna del Condado em Miramar, águas próximas da areia na Punta Las Marías e Ocean Park, água no Canal Martín Peña, água até Piñones e no caminho de Loíza. Águas, preamar, mangues, terras baixas, litorais, lagunas e pântanos. A água se avista a partir do ponto mais alto de San Juan e o olhar a registra na baía e circundando o porto. Estas águas que rodeiam a cidade vão se desdobrando à medida que os habitantes mais abastados se apropriam delas, cercando-as, domesticando-as ou urbanizando-as na La Puntilla, Bairro Operário, Alto del Cabro, San Mateo de Cangrejos, localidades próximas à cidade legal habitada no início pelos setores populares. A expansão extramuros, que aplaca e ocasionalmente suprime essa água, constitui três dos capítulos deste livro, uma história do movimento do capital sobre a terra, traçando um inventário do público e do privado, de negros e de brancos, de ricos e de pobres, mesclando-se ao longo de um território, construindo uma estrada, erigindo uma praça ou uma estátua, fundando uma capela ou um colégio de meninas.

A história dos nomes dos bairros afastados do núcleo citadino oficial é igualmente interessante e aponta o modo como as classes, os ofícios e as pessoas confluem para um mesmo espaço, negocia a forma em que o habitarão, além da maneira em que o sentem. Por detrás dessa fachada existem nomes que funcionam à maneira de indício pintoresco: os nomes dos bairros murados, originalmente ocupados pelos setores mais pobres, próximos ao matadouro, ao açougue, ao quartel militar ou ao depósito de lixo, e a seguir os não murados ou extramuros, assentamentos de escravos fugitivos em busca de habitação em terras não sujeitas ainda à especulação dos proprietários. O espaço vai se estratificando para dar lugar às classes que expulsam as outras, e a história da Rodovia Central servirá de eixo orientador na divisão e atribuição de valor econômico das propriedades próximas a ela, assim como a infra-estrutura que a potencializa: estradas de ferro, alambrado para a luz e telefone, aqueduto, todo isso criado nas últimas duas décadas do século XIX, formando parte da narrativa histórica do livro.

Os sucessivos projetos de urbanização, implantação de quadras, fundação de edifícios educativos que aspiravam a uma outra forma de “colonização”, tais como o Colégio do Sagrado Coração, a capela, lugares e ruas que às vezes coincidiam e às vezes maculavam a trama dos bairros que os antecedia, são pontos estratégicos da convivência. O autor relata detalhadamente o parcelamento e os planos de arruamento, a transformação da habitação e a fusão de estilos que acontece nos novos prédios, fatos que têm bastante a ver com o processo de socialização e com a forma das casas; trata-se da fusão e negociação de um território ambíguo, elástico e opaco, resultado de uma bricolagem ao longo do tempo. O livro, que é, além disso, um livro de arquitetura, se ocupa de diagramar por dentro e por fora, levando em consideração tanto as fachadas assim como os pátios interiores e pátios posteriores, a plata completa da casa, e a presença ou ausência de ornamentações, a história da habitação porto-riquenha, assim como o valor que tem os espaços particulares para seus habitantes ao longo da história, desde os taínos, passando pelos escravos, os escravos fugitivos, os colonizadores, os comerciantes, os vendedores ambulantes, os espanhóis, os serventes por empreitada, os latifundiários.

A fisionomia da cidade corresponde à história da povoação e a forma na qual os diversos setores sociais vão tornando seu um espaço que pretendem habitar, sujeito ao bem-estar e à necessidade. A cidade é a de San Juan, a qual depois de substituir Caparra como lugar apto para a habitação, torna-se o enclave da oficialidade colonial espanhola com seus conquistadores e militares, e depois o lugar da habitação, primeiro intramuros protegida de invasores e depois esparramando-se até o mar pela La Perla, até a península pela Puerta de San Justo e de costas para Cataño ou até o oeste, derrubando muralhas pela Puerta de Tierra ou pela Puerta de Santiago. Ao sul, o Canal San Antonio, zona de mangues e terra inundada. Seu limite é Cangrejos, hoje Miramar. Estes são os pontos cardeais do olhar que Quiles deita sobre o entorno hoje urbanizado da cidade de San Juan. Os próprios nomes nos dão um indício de como se sentiam seus habitantes e o autor do livro reflete sobre seu espaço, sobre o poder econômico que lhe dá forma, sobre as construções que se erigem nele.

Além da narração e descrição desta história intermediária entre o íntimo e o oficial do espaço habitado, ao autor também interessa não tanto a fachada, mas as partes que se escondem por detrás desta – os terrenos, o pátio interior, as grades, os corredores, os territórios intersticiais, os terraços superiores de onde se aprecia outra vista que transcenda a edificação ou o monumento. Também lhe atrai o que se oculta por trás do estilo neoclássico da San Juan antiga, o que não faz parte da “paisagem” porque é qualificado como feio pelo poder.

Diz o autor na introdução do livro que em lugar de olhar a rua principal ou assumir a iconografia oficial focada na cidade colonial e turística, estática e museificada, lhe interessa a cidade viva, funcional e dinâmica de Le Corbusier. E conclui: “As cidades não mostram todas suas caras. Para conhecê-las e descobrir suas partes ocultas, as imagens e metáforas de seus ‘outros’ espaços, temos que nos ‘perder nelas’ como sugere Calvino, descobrir os traços das fachadas, decifrar os discursos omitidos. É necessário interpretar os vestígios que ficaram marcados, como as linhas da mão, nas ruas, caminhos, praças e edifícios, assim como nos pátios posteriores e vestíbulos e os lugares da memória” (14). Esse pátio resguardado, a interioridade, a memória escondida, os papéis e escrituras que repousam em arquivos, registros, atas cartoriais, novelas do século dezenove, detalhes inadvertidos em uma pintura ou em uma serigrafia ou na ampliação repetida de uma foto, são os lugares aonde se põem o olhar de Quiles. Com isso aspira mostrar uma história diferente e outra, escrita pelos pobres, que “também constroem a cidade”.

A famosa pintura do governador Ustáriz, de José Campeche, poderia servir de emblema para este importante delineamento do texto-imagem-colagem de Quiles. Aponta an passant a idéia reiterada de que San Juan representa o Estado espanhol e sugere que imaginemos a transformação moderna do enclave urbano a partir da mobilidade dos ofícios, da heterogênea composição de seus habitantes e do destino diversificado da propriedade imobiliária da cidade intramuros nos princípios do século XX. O autor sugere olhar pela janela do governador Ustáriz tal como a registrou Campeche e através da qual outrora se viam escravos e uma arquitetura monumental. Sugere que imaginemos outra coisa e que o que antes planejou e indicou a mão de um governador do século XVIII consegue se pensar e se narrar desde outra época e de outro lugar, desde a cidade intermediada por outros personagens, pelos que convivem, compartilham e carecem de espaços de poder. Essa é a exortação maior, uma vez que se recorre a uma história quase perdida, apenas entrevista, e por isso o livro conclui surpreendentemente falando de Cangrejos, que por razão do agradecimento da coroa espanhola a um conhecido conservador espanhol radicado em San Juan, mudou seu nome pelo lugar de origem desse latifundiário mais ativo da localidade em meados do século, o lugar de Santurzit, povoado natal de Pablo Ubarri.

Se no capítulo quarto se acompanha a substituição dos negros pelos brancos nesta zona – dominada pelos Cortijo, os Falú, os Andino, os Escalera, os Rosario, os Verdejo, os Febres e os Andrades, que obtiveram o título de propriedade por suas façanhas militares, por usucapião, por herança ou por contratos de compra, enquanto outros os perdem ao se conformarem com cessões “de boca”, que posteriormente os impossibilitam de reclamá-los legalmente –, no capítulo quinto fazem sua aparição os forasteiros brancos ou novos povoadores, ou seja, os Ubarri, os Abreu, os Látimer, os Bolívar, os Coll e Toste, os Duffaut, os Colomer, para quem o terreno representa principalmente valor de troca. Não obstante, para os ali assentados desde o século XVIII, somava-se ao valor de uso o valor sentimental, como o demonstra o comovedor testemunho da velha Margot, que ao ver derrubada uma antiga casa de alvenaria, que não era a sua, localizada na rua De Diego, reconhece os troncos de três palmas de coco em torno das quais brincava quando era criança. Quem sabe por isso o autor termina o texto abruptamente, evocando quase poeticamente os bairros populares em uma frase que lhe serve de epílogo: “Detenho o olhar. Recordo em silêncio os rostos imaginados, as paisagens, algumas distantes, desta cidade sempre incompleta, sempre inconclusa, sempre presente”.

Finalmente, quero dar ênfase para a imaginação e, na vertente literária deste livro de Quiles, para a relação com nomes tão conhecidos como o de Calvino, sua alusão às memórias de Alejandro Tapia, aos quatro pisos e ao relato de José Luis González intitulado En el fondo del caño hay un negrito, aos mangues e terras baixas tão presentes nas narrações situadas na Nueva Venecia, de Edgardo Rodríguez Juliá, à aceleração estancada da povoação no hiperbólico congestionamento de Luis Rafael Sánchez, às histórias íntimas que naufragam nos relatos de urbanização dos poetas e narradores dos setenta e dos noventa em Porto Rico, no graffiti e nas fotografias de Los Pies de San Juan, de Eduardo Lalo.

Além disso, este inventário de Quiles sugere as afinidades desta narração com outras obras literárias que registram a geografia sentimental e política de vilas e cidades: com a Texaco na Martinica, de Patrick Chamoiseau, a Havana de El acoso, de Carpentier e de Tres Tristes Tigres, de Cabrera Infante, a lírica Buenos Aires de Borges ou a arrepiante de Sábato, a Paris existencial de Rayuela de Julio Cortázar, a ignóbil Santa María de Juan Carlos Onetti, a Macondo rural de García Márquez, a inventada utopia política citadina de Macedonio Fernández, a ardente Comala de Juan Rulfo, a Cidade do México metropolitana de Paz e de Fuentes, os subúrbios de Santiago do Chile de Diamela Eltit e tantas outras. Sobre essa filiação com a invenção e o afeto teria que dispor de outro espaço que não me propicia esta resenha, mas é o suficiente para o momento este meu olhar e convido, junto com o autor, a uma outra exortação, pois é justo pensar que este livro é uma leitura obrigatória para todos: os que se encontram à frente e por detrás de todas as fachadas.

sobre o autorAurea María Sotomayor é poeta, crítica literária e ensaísta. Foi co-fundadora das revistas “Postdata” e “Nómada”, em San Juan. Fez doutorado em literatura latino-americana na Universidade Stanford e é catedrática na Universidade de Porto Rico. Entre seus livros de poesia figuram, entre outros, “Sitios de la memoria”, “La gula de la tinta”, “Rizoma”. De crítica, destacam-se a antologia e estudo crítico “De lengua, razón y cuerpo” (Instituto de Cultura Puertorriquenha) e os livros de crítica “Hilo de Aracne” (Editora da Universidade de Porto Rico) e “Femina Faber: letras, música, ley” (Ediciones Calleján). Será publicado em breve sua tradução para o espanhol de “The Bounty”, de Derek Walcott, assim como seu livro de poesia mais recente, “Diseño del ala”.

comments

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided