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Cidade dos Motores, Rio de Janeiro. Paul Lester Wiener e José Luis Sert

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HONORATO, Rossana. Cidades tagarelas... ou que mudas permanecem. A sociabilidade observada nas ruas de Goitia. Resenhas Online, São Paulo, ano 04, n. 040.03, Vitruvius, abr. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.040/3161>.


“Edifica-se a casa para se estar nela; funda-se a cidade para se sair de casa e reunir-se com outros que também saíram de suas casas”
Fernando Chueca Goitia, Breve História do Urbanismo

Na plenitude de seus atributos, as cidades são insubstituíveis. Pode viver-se fora delas, mas sempre contando com elas, abertas ou fechadas...

Valores como esses ilustram as convicções de Goitia em sua investigação sobre as origens das formas de cidades e os modelos de civilização a que deram vida e conduziram a complexa trajetória da humanidade à urbanidade de nossos dias. Como faz isso, é o que pretendo agora demonstrar, elegendo quatro das dez lições de seu livro Breve História do Urbanismo (Lisboa: Editorial Presença, 1982), em que desfila no pano da história tipos fundamentais de cidade e especula anotações sobre suas manifestações na antiguidade, no medievo e na atualidade.

Impressionado com a “mais compreensível das obras do homem” (citando Walt Whitman, 1982:07), é na tarefa da definição do termo que o autor reconhece uma primeira dificuldade. Em busca deste esclarecimento, presta atenção à forma com que as cidades do tempo deixaram marcas no espaço, e relacionaram o morar e os espaços públicos, e consolidaram ou não a existência e o funcionamento de ruas.

Para isso Goitia dirige o seu olhar para o modo de vida nas cidades, caracterizando-o segundo essenciais traços físicos decorrentes e as recíprocas interpenetrações culturais que engendraram, como arquivo da história, como palco da presença ativa de pessoas. Deixando inclusive que vislumbremos o seu profundo descontentamento com o lugar conquistado pelo insaciável monstro desintegrador da vida de rua da cidade contemporânea: o automóvel.

Uma série de abordagens distintas atrai o pensamento do curioso investigador sobre as possibilidades de estudar-se a cidade: a da história, que encontra amparo no trabalho de Spengler, certo de que a história universal é história de cidades; a da geografia, conforme defende Vidal La Blanche a preeminência da natureza sobre o homem, que nela apenas organiza necessidades e desejos; a da economia, em que Pirenne sustenta a inexistência de civilizações que promoveram a vida das cidades sem a vigência do comércio e da indústria; a da política, contextualizada por Aristóteles como uma conjunção de um certo número de cidadãos; a da sociedade, como símbolo de relações sociais integradas, conforme concebida nos preceitos de Munford; e a da arte e da arquitetura, em que Alberti amarrou a grandeza da arquitetura à cidade cujos muros de proteção externassem a solidez de suas instituições.

Para o autor, entre todas, fica explícito o valor que agrega à urbe ao papel fundamental da praça, corroborando a cidade clássica de Ortega & Gasset, nascida de um instinto oposto ao doméstico, por pontuar a rua, o lado de fora, como o local para conversa, ágora, discurso, eloqüência, política: “em rigor, a urbe clássica não devia ter casas, mas apenas as fachadas necessárias para delimitar uma praça... (Ortega e Gasset apud Goitia, 1982:9). E assim, contrapondo vida doméstica e vida civil – cidades domésticas e cidades públicas, Goitia reclama a carência de estudos que banhem de luz a cidade de dentro das portas mediante aquela do lado de fora. Enquanto encarece um apelo à essência definitiva da praça para a vida da cidade, chega a afirmar que a sua inexistência em um aglomerado urbano retira dele a condição de chamar-se cidade, associando a identificação do termo à presença de vida exterior e civil.

Para ele, emerge em significância a loquacidade da cidade: a cidade grande sala de reunião e sede da tertúlia em que se constituiu a ágora conversadeira e promotora da vida citadina, cujo arrefecimento funcional fez igualmente declinar o exercício da cidadania. Daí a ênfase que dá à questão da sociabilidade, aquela capacidade individual ou de grupos à interação social, cujas características formais do espaço podem ou não impulsioná-la.

Para pensar as cidades caladas e aquelas que falam, o autor destaca três tipos de cidade: a cidade pública do mundo clássico – a civitas romana, a cidade doméstica e campesina da civilização nórdica e a cidade privada e religiosa do Islão.

A cidade antiga, precedendo a técnica industrial posterior – como a do império romano que já herdara da grega os sistemas de instalação de esgoto, de aquedutos, de água corrente, os balneários, os pavimentos, os mercados etc. –, ofertou às cidades contemporâneas a contribuição mais importante para o traçado urbano que se consolidou na memória contemporânea.

A aparentemente insípida cidade islâmica preconizada pela cidade-casa, cidade lá dentro, cidade-santuário, tem a plenitude da vida privada atormentada pelo próprio muçulmano, dividido entre o harém e a vida ‘de relação’ que configuram a fisionomia aparente da cidade lá fora. Compreensível fica a importância não dada à rua e à praça da cidade muçulmana – esta última, ‘restrita’ exclusivamente ao pátio da mesquita, espaço religioso para meditação e passivo deleite do tempo que flui, flui, sem parecer causar vexame.

A família da cidade muçulmana é a organização de dentro para fora, da casa para a rua, em oposição à cidade ocidental, em que se qeneralizou o contrário: a rua traçada condicionando a ocupação das casas. Na cidade muçulmana, a casa prevaleceu e obrigou a ‘rua’ à acomodação tortuosa, à intimidade labiríntica, becos sem saída. Estrutura que, inadequadamente nominada para Goitia, justifica o caráter decisivo de seus véus – as portas da cidade. Intrigante configuração, entretanto, pouca atenção mereceu de historiadores da cidade.

A cidade espanhola transparece uma intensa conciliação: a urbe latina, loquaz, dialética e o hermetismo do harém da sociedade islâmica, cujo modelo barroco deu forma a que o autor chama de cidade-convento.

O que provoca a inquietude de Goitia são as questões que indagam o caráter da vida pública para a definição de cidade, visto a sua ausência em alguma delas. Ele busca um conceito que englobe espécies tão diferentes, sobretudo mediante a presença de aglomerações humanas que não constituem cidades, como as das regiões primitivas ou as do interior da África atual ou aquelas da China posterior.

Recorre a Splenger outra vez para corroborar a tese de uma alma da cidade, um verdadeiro milagre que subitamente faça emergir a espiritualidade geral da cultura, uma alma coletiva de nova espécie, “cujos fundamentos últimos permanecerão para nós envoltos em eterno mistério” (1982:15). Uma alma que uma vez desperta forma um corpo visível que vive, respira, cresce, adquire um rosto peculiar, um idioma de formas de história intensa que dá curso ao ciclo vital de uma cultura. Para assim pensar o problema da cidade que a primeira era industrial engendrou, consolidando publica e universalmente seu termo à cidade mais insensata, mais sem alma e mais desintegradora de que somos partícipes, cuja expressão formal engata a racionalidade da quadrícula e alia o símbolo de progresso ao amontoado de gente num lugar que se designa por um nome próprio para mero efeito de correspondência. O que na Grécia antiga representou um triunfo do racionalismo, em Roma e na América do Sul do século XIX converteu-se no principal instrumento dos especuladores de terreno (1982:18).

Sem esquecer as vantagens e possibilidades trazidas pelos novos meios de telecomunicação emergidos da indústria, mas contra a corrente desintegradora da cidade contemporânea, o autor continua acreditando nos locais de reunião pública, nas praças, nos passeios, nos cafés, nos cassinos populares, que são para ele o que fomenta o livre encontro, a livre conversa, fundamentais ao desenvolvimento da valorizada cidade-alma. Por isso reclama uma atenção à reconstrução dos órgãos públicos de uma cidade.

São algumas das questões refletidas pelo arquiteto, historiador da arte, professor e apreciador de palavras Fernando Chueca Goitia para tratar a história de rua: cidades de dentro das portas e cidades de fora das portas; cidade de fachadas, cidade de interiores, cidades sem alma, civilizações sem cidades, insensatas cidades figurando um idioma de imagens em nosso olhar, reclamando ao presente a ágora de agora – um órgão da sensibilidade pública – para gerar vigorosas cidades do lado de fora dos muros.

[exercício apresentado à Disciplina História da forma urbana, período 2004, 1º semestre, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE – CAC – PPGDU, ministrada pelo arquiteto e professor doutor Geraldo Gomes.]

sobre o autorRossana Honorato é graduada em Arquitetura e Urbanismo e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba. É aluna do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE. É professora de Desenho Urbano do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPB, onde ministra a disciplina Desenho Urbano V. Foi presidente do IAB-Paraíba e atuou em diversos conselhos de gestão nos três níveis de governo no país. É autora dos livros Se essa cidade fosse minha e A cidade entrevista, sobre a cidade de João Pessoa, publicados em 1999 pela Editora Universitária da UFPB, e de diversos artigos publicados em revistas científicas e na imprensa escrita.

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