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abstracts

português
Ensaio sobre a função das imagens no processo de criação, através da relação imagem/invenção exposta no livro "Eduardo Souto de Moura: Atlas de Parede, Imagens de Método".

english
Essay on the role of images in the creation process, through the relation image/invention exposed in the book "Eduardo Souto de Moura: Atlas de Parede, Imagens de Método".

español
Ensayo sobre el papel de las imágenes en el proceso de creación, desde la relación imagen/invención que expone el libro "Eduardo Souto de Moura: Atlas de Parede, Imagens de Método".

how to quote

SERRAGLIO, João. A ação sobre imagens de Eduardo Souto de Moura. Resenhas Online, São Paulo, ano 12, n. 138.02, Vitruvius, jun. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/12.138/4770>.


“Pensar em imagens de forma associativa, selvagem, livre, ordenada e sistemática, em imagens arquitetônicas, espaciais, coloridas e sensuais – isto é a minha definição preferida do ato de projetar”
Peter Zumthor, 2009 (1)

É uma pena que só aos poucos vamos recebendo no Brasil os livros do catálogo da Dafne Editora. Esta pequena casa editorial portuguesa vem despachando, silenciosamente, desde a cidade do Porto, um material que se inscreve entre o que há de melhor em termos de publicações sobre arquitetura (e seus limites) em língua portuguesa. Melhor ainda, pois o que se publica não é o grande clichê, aquele cuja venda está garantida: através das suas publicações pode-se entrever um arriscado trabalho de experimentação, que lança novos olhares e cruza a fronteira das disciplinas.

O volume que tenho em mãos, sobre o trabalho de Eduardo Souto de Moura, chama-se “Atlas de Parede, Imagens de Método”. Neste volume o olhar dos organizadores volta-se para o trabalho de Souto de Moura, o mais festejado representante da Escola do Porto na atualidade, ganhador do Pritzker no ano de 2011. Sendo Souto de Moura um dos mais midiáticos arquitetos portugueses, naturalmente já existem no mercado obras de peso dedicadas ao seu trabalho. O Livro da Dafne assume a ideia de traçar outro caminho, buscando distanciar-se dos volumes já existentes, lançando uma inquietante leitura ao revés do trabalho de Souto de Moura.

A estratégia adotada é a elaboração de um compêndio de imagens recolhidas no ateliê, nas gavetas e nos arquivos do arquiteto. Essas imagens são associadas, segundo a lógica que propõe os organizadores. O percurso expositivo é a própria obra crítica. Esse compêndio de imagens não busca enumerar a obra construída de Souto de Moura, redundando na própria obra, que existe enquanto materialidade, ou nos registros dos volumes dedicados ao arquiteto.

O que a trajetória do Atlas de Parede delineia é um perfil do trabalho, um negativo da obra de Souto de Moura. Como num estêncil - uma máscara vazada - através da qual surge o corpo da obra, mas como perfil, apenas imaginável. Essa constelação de imagens define o trabalho que, ausente, comparece pelo seu negativo: expondo tudo que não seja a própria obra construída, os autores definem um traçado dos contornos do trabalho. Nesse sentido, o que o trabalho apresenta é pura margem. Aquilo que circunda a obra, mas que não é obra porque não é fim: é meio, processo de trabalho.

Através das imagens, o que os autores projetam é uma sombra do trabalho de Souto de Moura.

Não a estátua, mas a forma que recebe o bronze fervente.

Como observa Ursprung (2) o estúdio de Souto de Moura se parece mais com o ateliê de um artista do que com um escritório de arquitetura. As paredes estão repletas de imagens, com ligações diretas ou longínquas com os trabalhos que vão sendo realizados no ateliê; maquetes e material de desenho ocupam as mesas. Essa imagem contrasta com a imagem dos escritórios corporativos de arquitetura, que se parecem mais com clínicas ou gabinetes de burocratas, eliminados do ambiente os traços do trabalho, da incerteza que acompanha os processos de experimentação. Nesse sentido, as imagens que cercam Souto de Moura tem um papel fundamental. Segundo Ursprung (2011) “as imagens, diria, funcionam como um reflexo do trabalho cotidiano” (3). Nesse sentido, é possível lançar uma analogia entre o Atlas de Parede e o trabalho de Velázquez, As Meninas.

As Meninas, Velasquez. Museu do Prado, Madri.

Nessa pintura do século XVI, Velázquez opera uma mudança no foco do trabalho. Ao invés do retratado, o que aparece é o ateliê do pintor e toda a atmosfera em que ambienta-se o seu trabalho. O próprio pintor aparece, tomando distância e estudando seu personagem. Parte da corte está presente nos bastidores, acompanhando o trabalho do pintor, que acontece. Os retratados, aqueles sobre os quais o pintor fixa seu olhar, não são visíveis, estão atrás do plano da pintura, numa inversão de posição com o pintor. No entanto, no plano de fundo da pintura barroca, nas paredes escuras do ateliê carregadas de imagens, uma delas se destaca por emitir um feixe de luz. É um espelho. Ali se adivinha o perfil de um casal. É o rei Filipe IV e sua esposa Mariana, objetos do trabalho do pintor. O casal real, objeto principal da pintura, através do artifício do pintor, comparece como um reflexo, uma sombra vaga do processo de trabalho.

O que importa aqui não é a obra, mas o que está por trás dela, aquilo que ela esconde.

O material exposto é o trabalho que acontece. O trabalho é encontrado à meio caminho, flagrado na iminência do surgimento da obra. É uma forma de se percorrer o trabalho de Souto de Moura no instante em que ele está prestes a acontecer.

Mas como seria possível registrar esse momento singular que é o surgimento de uma ideia? A estratégia utilizada para dar lógica a esse discurso de imagens é a de recolhê-las e acondicioná-las num atlas.

O titã Atlas foi condenado por Zeus a carregar perpetuamente o céu sobre os ombros. O que chamamos de Atlas, hoje, é um conjunto de mapas, projeções de uma superfície esférica numa superfície plana. Mas o que é o Atlas? Um atlas é uma forma de desmontar o mundo em imagens para que seja possível carregá-lo. O atlas permite que o fenômeno supra-humano do mundo (a abóboda celeste que carrega Atlas) possa ser planificado, achatado em imagens, e carregado na forma de um livro. A capacidade humanizadora - fazer com que eventos supra-humanos sejam manejáveis numa escala humana - é que está na raiz do atlas.

O atlas, então, se apresenta como um recorrido de imagens. Mas o discurso das imagens não é linear como a escrita. A leitura do atlas, mesmo que proponha uma linearidade através das páginas do livro, precisa da intervenção do leitor, que deve atuar sobre as imagens, associando-as para que sejam interpretáveis. Como dizia Flusser a respeito dos atlas de sua infância: “como não é possível representar relações fluidas em superfícies fixas, o leitor era obrigado a estabelecer, ele próprio, tais relações entre eventos (…) de modo que a dinâmica da história se transferiu da história mesma para a imaginação do leitor” (4). Flusser intuía, através da complexidade crescente dos atlas de sua infância, que cada vez aceitavam mais camadas de informação, o advento de uma “nova imaginação”, derivada da capacidade de interpretar as sequências de imagens.

Mais além de uma sequência lógica de imagens, o Atlas de Parede é um convite ao exercício de desmontar e remontar as imagens, a uma “nova imaginação”. Estas imagens não estão fechadas, não esgotam-se na sequência que se lhe impõe o livro. Por isso emerge desta peça, através da analogia com as cartas de um baralho, uma insuspeitada dimensão divinatória.

Este atlas retira as imagens das paredes e as dispõe sobre a mesa. Não emoldura as imagens, sacralizando-as, mas abre-as sobre a mesa, que é espaço operativo, superfície de jogo ou de realização do trabalho (5). Abre-as como se fosse um jogo de tarô ou do I-Ching. As imagens são embaralhadas e recombinadas: cada vez que são acessadas, possibilitam novas ligações e novos significados. Como no tarô ou no baralho espanhol, da livre associação das cartas, surgem novos significados. Mas esses significados não são exatamente aleatórios. Eles são resultado da sorte da pessoa que abre o baralho. Sorte ou azar, que, no fundo, são a mesma coisa, o hasard, acaso. Como coloca Souto de Moura, “o projeto é a procura das razões para o acaso” (6). O que há de inexplicável no surgimento do projeto não é evitado, o hasard é aceito, através do jogo, de uma certa prática divinatória de que estão carregadas as imagens, em oposição a uma prática funcionalista que duvida das imagens, evitando-as.

No caso de Souto de Moura, o que se ausenta não é a dúvida, mas a negação das imagens. As imagens não são aceitas sem questionamentos, a dúvida deve existir. O trabalho de Souto de Moura é trabalho sobre imagens: imaginar, deslocar, reconstruir imagens. Como na citação de Herberto Hélder feita por Souto de Moura “trabalhar na transmutação, na transformação, na metamorphosis; é nossa própria obra” (7). O processo de trabalho não pode ser a simples compilação de imagens que povoam o mundo contemporâneo, o imaginário. O processo de trabalho de Souto de Moura é ação sobre imagens, imaginação. As imagens são desmontadas para dar espaço à novas imagens.

“Transportamos conosco imagens de Arquitetura que nos marcaram. Estas podem suscitar questões na nossa mente. Mas com esta base ainda não nasce nenhum projeto novo, nenhuma arquitetura nova. Cada projeto exige imagens novas. As nossas imagens ‘antigas’ apenas nos podem ajudar a encontrar as novas” Peter Zumthor, 2009 (8)

A imaginação como ação entre imagens. As imagens podem ser tudo e nada. Para além das imagens, o que está entre elas. Entre as imagens está o vazio, que também é o infinito. Preencher o vazio entre as imagens (9). Aí está o exercício da imaginação.

notas

1
ZUMTHOR, Peter. Ensinar arquitectura, aprender arquitectura. In:Pensar a arquitectura. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2009.

2
URSPRUNG, Philip. O Gabinete de Curiosidades de Souto de Moura. In: TAVARES, André e BANDEIRA, Pedro (org.). Eduardo Souto de Moura: Atlas de Parede – Imagens de Método. Porto: Dafne, 2011.

3
Op. cit., p. 122.

4
FLUSSER, Vilem. Meu Atlas. In: Flusser Studies, n. 14, Novembro 2012. http://www.flusserstudies.net/pag/14/flusser-meu-atlas.pdf

5
DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas – Como levar o mundo nas costas?. In: Sopro – Panfleto Político-Cultural, n. 41, Dez. 2010. http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/atlas.html

6
Retirado de: BANDEIRA, Pedro. Tudo é arquitectura. In: TAVARES, André e BANDEIRA, Pedro (org.). Eduardo Souto de Moura: Atlas de Parede – Imagens de Método. Porto: Dafne, 2011.

7
Herberto Hélder citado em: SOUTO de MOURA, Eduardo. Souto de Moura. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1990.

8
Op. cit., p. 121.

9
Conforme nos incitava o Professor Raul Antelo. ANTELO, Raul. Aimaginação.Anotações do curso da Pós-graduação em Literatura.Florianópolis: UFSC, 2009.

sobre o autor

João Serraglio, arquiteto e urbanista, mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade e professor do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal de Santa Catarina.

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