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Quando um estado supostamente laico abre as portas para a palavra de Deus, é importante que saibamos que ao mesmo tempo abre uma janela para o diabo entrar. Nesse cenário, um pequeno grupo se pergunta: qual é a melhor forma de lidar com o Grande Inimigo?

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GUERRA, Caio. Salve Satanás? Relações entre religião e Estado no documentário “Hail Satan?”. Resenhas Online, São Paulo, ano 19, n. 219.03, Vitruvius, mar. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/19.219/7665>.


Alguma vez na vida você já se perguntou “será que eu sou satanista?” A primeira vez que eu pensei em me fazer essa pergunta foi após assistir ao documentário “Hail Satan?”, dirigido pela cineasta Penny Lane sobre a ascensão da Nova Igreja Satânica nos Estados Unidos. É bem possível que, até o fim desse filme, você pode se fazer essa mesma pergunta; e a resposta pode te surpreender. Mas para que isso faça sentido, é preciso primeiro falar um pouco sobre a origem do satanismo moderno.

Assim como o Brasil, os Estados Unidos se reconhecem como uma nação laica, secular. Mas, também como no Brasil, é comum ver regras e objetos religiosos em edifícios que deveriam servir ao Estado, às pessoas – e, invariavelmente, esses objetos religiosos têm origem cristã. Lembremos que em um Estado laico é inconstitucional privilegiar uma religião em detrimento de qualquer outra, ou usar crenças religiosas como base para legislar.

Até aí, nada de novo. Virou lugar comum observar o pequeno Cristo crucificado sobre os batentes das portas ou mesmo sobre as cabeças dos juízes e membros do poder executivo. Mas para um pequeno grupo de pessoas nos Estados Unidos, uma escultura representando os dez mandamentos colocada no pátio de um palácio do governo (cenário também comum) foi vista pelo que é: um símbolo bizarro de uma deturpação do conceito de laicidade. Após diversas tentativas legais de tentar retirar a estátua com base na Constituição, todas sumamente ignoradas, esse pequeno grupo de pessoas pensou num bom meio termo: propôs a construção de uma estátua representando Satã, na imagem de Baphomet, ao lado dos dez mandamentos, sob alegação de que, se uma religião é representada numa casa de governo, todas deveriam ser. O caso foi tão forte que, incapaz de bloquear legalmente a construção e instalação da estátua de Baphomet enquanto a estátua dos Dez Mandamentos se mantivesse, o governador foi obrigado a demolir a representação dos Dez Mandamentos, ao que o pequeno grupo prontamente retira o pedido de instalação do Baphomet.

Cena do documentário “Hail Satan?”, de Penny Lane
Foto divulgação

A partir dessa vitória, esse pequeno grupo se constitui como um grupo ativista, abrindo aquela que viria a ser a maior igreja satânica da história, angariando mais de cinquenta mil devotos em poucos meses e conseguindo status de religião oficial pelas leis americanas. O objetivo: se instituir como uma força política pela separação entre Igreja e Estado. A ferramenta? Técnicas de construção de comunidade e ação direta que, ao longo de muitos anos, foram desenvolvidas e abusadas por tantos líderes religiosos e autoritários, em especial pelas diversas vertentes da igreja cristã que tanto se distanciaram dos ideais de seu fundador. Esses mesmos hipócritas que, mesmo dizendo acreditarem em um ser divino que vê tudo e julga a todos, são protagonistas de escândalos ao longo dos séculos, da caça e execução de mulheres como bruxas até casos de pedofilia em série. Mas agora, essas técnicas são usadas para ajudar a quebrar as correntes construídas.

Composta predominantemente por ateus, a igreja satânica não possui nenhum integrante que de fato acredita em um ser antropomórfico (ou caprino) que rege o universo; a escolha do símbolo de satã, no entanto, não é apenas uma provocação: a palavra “satã”, originalmente, trás o significado de “adversário” (“o outro”); Lúcifer, “aquele que trás a luz”; Diabo, “Dual”, ou “cingido”. Nenhum desses nomes indica “maldade”. Eles entendem a potência de se ter um símbolo, e que símbolo melhor do que um anjo que, diante da perspectiva de servidão eterna, se rebela contra um ditador absoluto? Como Prometeu, que roubou o fogo divino para trazer o esclarecimento aos humanos, o Diabo foi quem convenceu o homem a provar do fruto do conhecimento. Mas, diferente dos Gregos, que idolatram a trágica figura de Prometeu, os cristãos amaldiçoam o dia em que escolheram o conhecimento, ansiando pelo estupor eterno de um Éden onde nada muda.

Cena do documentário “Hail Satan?”, de Penny Lane
Foto divulgação

Os seguidores da nova igreja satânica realizam diversas ações de caridade, mutirões de coleta voluntária de lixo, auxílio pedagógico, ações por melhoramentos de políticas públicas, doações de agasalhos, alimentos e absorventes para pessoas em situação de rua, dentre tantas outras; é impagável olhar um grupo de góticos vestidos de couro rondando praias com pequenos tridentes, muito mais úteis para coletar lixo do que para torturar almas penadas. Eles se juntam para seitas, sem sacrifícios, mas com momentos de catarse e discussão de ações políticas, e seguem um rígido código de conduta, “Os Sete Preceitos do Satanismo”:

1 – Devemos nos esforçar para agir com compaixão e empatia com todas as criaturas, em conformidade com a razão.

2 – A luta pela justiça é uma busca constante e necessária, que deve prevalecer sobre as leis e instituições.

3 – O corpo de uma pessoa é inviolável, sujeito apenas à sua própria vontade.

4 – As liberdades de outrem devem ser respeitadas. Usurpar voluntariamente e injustamente a liberdade de outros é renunciar à sua própria.

5 – Crenças devem estar de acordo com a melhor compreensão científica do mundo. Devemos tomar cuidado para nunca distorcer fatos científicos para que se adequem às nossas crenças.

6 – As pessoas são falíveis. Se cometermos um erro, devemos fazer o nosso melhor para corrigi-lo e resolver qualquer dano que tenha sido causado.

7 – Cada preceito é um princípio orientador concebido para inspirar nobreza em ação e pensamento. O espírito de compaixão, sabedoria e justiça deve sempre prevalecer sobre a palavra escrita ou falada.

Cena do documentário “Hail Satan?”, de Penny Lane
Foto divulgação

Mas por que se dar ao trabalho de criar uma religião cujos membros são, praticamente, todos ateus? Bem, ser ateu é uma coisa meio chata, sem graça. Baseado na negação, você não cria um senso de comunidade, um objetivo comum a ser alcançado. Negando os outros por conta de detalhes, você deixa de lado o cenário completo e estagna o desenvolvimento. Uma religião, por outro lado, pode ser usada para criar vínculos, unir, divertir, reverter e trazer mudanças reais para nosso entorno.

E por que diabos estou levantando esse assunto nesse momento do nosso país? Porque, apesar de na teoria vivermos em um Estado laico, na prática o lado ruim da religião se insere cada vez mais no âmbito político, apodrecendo as estruturas democráticas e se desdobrando ao máximo para dominar nossos corpos e nossas mentes. Às vezes pode até parecer que essa é uma regra imutável da humanidade, mas esse afã religioso começou há menos tempo do que você (provavelmente) pensa: nos anos 1950, os Estados Unidos estabeleceram em peso a caça aos comunistas no país e, como uma técnica de unificação contra o inimigo comunista, ateu por princípio, o macarthismo pegou pesado no discurso religioso para se diferenciar dos inimigos. Entre prisões políticas de ativistas, censura a escritores e roteiristas e perseguição de direitos, a imagem da cruz foi usada como um ponto de oposição contra o “inimigo”, o “corrompido”. Detalhe interessante: nessa mesma época, pelo mesmo motivo, o governo americano deu cidadania e acolhimento para diversos oficiais nazistas sobreviventes da Segunda Guerra, sem nenhum tipo de pesquisa de antecedentes para vistoriar crimes de guerra; afinal, o único grupo que historicamente odeia mais os comunistas do que os americanos é o nazista, então nazistas infiltrados pelo país poderiam ajudar na caça às bruxas vermelhas. Mas se essa deformação é tão recente, qual a origem das esculturas dos dez mandamentos que ocupam tantas casas de governo nos EUA? Bom, em 1956, como campanha de lançamento do filme “Os Dez Mandamentos”, a Paramount Pictures distribuiu dezenas de réplicas em pedra dos dez mandamentos para espaços públicos.

Cena do documentário “Hail Satan?”, de Penny Lane
Foto divulgação

O Brasil, influenciado pelo aliado norte americano, seguiu a mesma frequência, e está se transformando em uma nação de governo evangelizado; nossa ditadura militar foi por “Deus e a Família”, contra um inimigo comunista já há muito inexistente; nossas últimas eleições foram marcadas por um discurso contra um “inimigo”, ainda comunista e demoníaco, a ser eliminado. E ainda outros países, como a Índia com a recente caça aos muçulmanos, estão entrando no jogo de ignorar a laicidade de suas constituições. Ou seja: esse nosso costume não é algo eterno e imutável, mas uma construção comportamental com base estritamente econômica. Da mesma forma que esse totalitarismo de uma vertente de religião sobre o governo foi instituído, ele pode ser destruído.

Convido você, companheiro leitor, a repensar seu lugar nesse processo todo, e dar uma chance para receber Satã em seu coração; se os grupos no poder insistem em ignorar a ciência, a sociologia, a lei escrita pelo homem para o homem, tudo em defesa de uma ditadura de mitos e seres divinos, vamos assumir o que somos: o “Inimigo”.

Somos imperfeitos, paradoxais, falíveis, humanos, mas que façamos o melhor para trazer a luz a nós mesmos e ao máximo de pessoas que conseguirmos diante dessa era de escuridão. Enquanto eles pregam a submissão absoluta a uma criatura mitológica, que preguemos a liberdade pelo conhecimento, que estendamos a mão para que os outros possam também ver um caminho novo, se sentir acolhidos para o futuro e não atacados pelo passado (6º preceito do satanismo). Não podemos deixar a pulsão da cultura de cancelamento queimar todas as pontes possíveis; se nos unirmos, podemos compartilhar informação, fazer com que todos entendam qual o valor de um voto, de defender leis humanas, de ajudar o outro e se deixar ser ajudado, de lutar por mudanças com base na ciência (5º preceito do satanismo) e na empatia (1º preceito do satanismo) em busca de justiça (2º preceito do satanismo). Nenhuma escuridão ou império dura para sempre; mesmo Hitler, cercado pelos comunistas que invadiam Berlim, se acovardou e preferiu resumir sua vida com uma bala.

Se Deus tranca nossa porta com barras de ferro, que seja o Diabo quem abre a janela para permitir que vejamos um novo sol nascer.

Cartaz de divulgação do documentário “Hail Satan?”, de Penny Lane
Imagem divulgação

notas

NE – “Hail Satan?”, direção de Penny Lane. Documentário, 1h35min, Magnolia Pictures, EUA, 2019.

sobre o autor

Caio Guerra, cineasta e roteirista, ao lado de sua irmã Helena, dirige a Irmãos Guerra Filmes, produtora independente brasileira que atua no mercado audiovisual.

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