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reviews online ISSN 2175-6694


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português
A resenha apresenta a exposição Our Time for a Future Caring, que ocupou o pavilhão da Índia na 58ª Bienal de Veneza (2019) e faz uma breve introdução da trajetória de cada um dos oito artistas selecionados.

english
The review presents the exhibition Our Time for a Future Caring that occupied the Indian pavilion at the 58th Venice Biennial (2019) and introduces the trajectory of each of the eight selected artists.

español
La reseña presenta la exposición Our Time for a Future Caring, que ocupó el pabellón de la India em la 58ª Bienal de Venecia (2019) y brevemente introduce la trayectoria de cada uno de los ocho artistas seleccionados.

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HARTENTHAL, Mariana W. von. Gandhi em Veneza. Pavilhão da Índia na Bienal de Veneza de 2019. Resenhas Online, São Paulo, ano 19, n. 226.03, Vitruvius, out. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/19.226/7927>.


Oito anos depois da sua primeira participação na Bienal de Veneza em 2011, a Índia voltou a ter um pavilhão na 58ª edição do evento em 2019, cujo tema foi May You Live in Interesting Times e teve como curador geral o americano Ralph Rugoff. Intitulada Our Time for a Future Caring, a exposição indiana foi organizada por uma conjunção entre o Ministério da Cultura, a Confederação das Indústrias do país, a Galeria Nacional de Arte Moderna e o Museu Kiran Nadar de Nova Delhi, representado por sua Curadora Chefe, Roobina Karode (1). O pavilhão comemora os 150 anos de nascimento de Mohandas K. Gandhi, o Mahatma, em uma seleção de obras que não o representavam de forma explícita, mas discutiam temas importantes para o líder como a violência, a intolerância e o cotidiano do povo indiano, principalmente artesãos e camponeses. Foram selecionados oito artistas: Nandalal Bose, MF Husain, Atul Dodiya, Jitish Kallat, GR Iranna, Rummana Hussain, Shakuntala Kulkarni e Ashim Purkayastha.

Karode escreveu um texto introdutório no pequeno catálogo de vinte páginas que acompanhou a exposição. Ela afirma que o seu objetivo era “ajudar a inserir artistas e obras de arte indianas no mapa mundial” com peças que funcionassem como “alegorias, reflexões e narrativas” evocando sutilmente as propostas e práticas de Ghandi. No texto, Karode explica que o espaço expositivo em tons suaves e neutros, foi pensado como um sarai ou local de descanso. Além das cores sóbrias, os organizadores optaram por uma expografia simples e legível: ao entrar no pavilhão o visitante compreendia facilmente a disposição do espaço, no que era auxiliado pelo mapa reproduzido no catálogo.

Cinco posters Haripura do pioneiro do modernismo indiano Nandalal Bose (1882-1966) abriam a exposição. Um dos mais importantes artistas do país, Bose foi influenciado pelas ideias de Gandhi e do intelectual Rabindranath Tagore (1861-1941) e também era um admirador da qualidade e estética do artesanato indiano. O artista conheceu Gandhi em 1935, e a partir de então passou a colaborar com o líder em diversos projetos. No ano seguinte, o líder o convidou para organizar uma exposição de arte e artesanato para o Congresso Nacional Indiano, seu partido, na cidade de Lucknow. Satisfeito com o resultado, o Mahatma o comissionou para criar obras para uma exposição que ocorreu durante o encontro do Congresso em 1938 em Haripura, originando o que é considerado o primeiro projeto de arte pública no país. Como parte do projeto, cerca de 400 painéis em têmpera sobre papel artesanal foram confeccionados à mão por Bose e seus colaboradores, ilustrando o cotidiano da população rural em cores vivas e traços expressivos.

Outra obra selecionada foi Zameen (Homeland, óleo sobre tela, 1955), de Maqbool Fida Husain (1915-2011). Associado ao Grupo Bombay Progressive Artists durante os anos 1940, o artista conhecido como o “Picasso da Índia” participou como convidado especial da Bienal de São Paulo em 1971. Durante sua carreira, Husain reconfigurou o vocabulário visual do modernismo ao adaptá-lo a temas indianos. Foi também um diretor de cinema respeitado; seu filme Through the Eyes of a Painter recebeu o Leão de Ouro para curtas no Festival de Berlim de 1967. Polêmico em seu país natal por retratar divindades em situações pouco ortodoxas, às vezes nuas, ele foi perseguido por religiosos hindus ofendidos por suas obras. Por outro lado, alguns muçulmanos ficaram tão incomodados com a interpretação de uma música religiosa em seu filme Meenaxi: A Tale of Three Cities (2004), que a obra teve que ser retirada dos cinemas. A intolerância atingiu tal ponto em que o artista deixou a Índia e passou a viver entre Doha e Londres, eventualmente renunciando à sua nacionalidade indiana e tornando-se cidadão Qatari. Ele nunca mais voltou à Índia e está enterrado em Londres.

Medindo quase cinco metros e meio de largura, Zameen lembra um mural. Rodas de fiar, animais como galinhas, burros e bois e pessoas engajadas em atividades tradicionais como o jogo dholak estão representadas em tons terrosos. A obra, que recebeu o prêmio principal na primeira exposição nacional de arte da Índia em 1955, trata da conexão entre pessoas e sua terra e comunidade.

Criada originalmente em 2002, a instalação Broken Branches de Atul Dodiya (1959–) é composta por vitrines inspiradas por sua visita ao complexo memorial Kirti Mandir, que inclui a casa onde nasceu Gandhi na cidade de Porbandar. A visita aconteceu logo após uma tragédia na cidade de Godhra, quando uma multidão incendiou um trem onde estavam 59 peregrinos hindus, um evento que instigou três dias de violência e mais de mil mortes. Durante a visita ao memorial, Dodiya observou como os pertences do líder estavam expostos em vitrines cobertas por um vidro inclinado para protegê-los dos pássaros. Abalado com a violência em Godhra, o artista criou réplicas das vitrines onde posicionou objetos que ilustram o sofrimento humano e a mescla entre o pessoal e o político. Sobre as vitrines colocou imagens de pássaros que ecoam a referência original e funcionam como “metáforas para nossas almas” segundo o artista, que se apresenta em seu website como alinhado com a filosofia de compaixão e não-violência de Gandhi.

Esta obra me chamou a atenção especialmente pela maneira como lida com os aparatos de visualização museológicos, sempre tão próximos a outros aparatos como vitrines e altares, isto sem falar nos dispositivos panópticos discutidos por Michel Foucault. Dodiya já havia explorado a ideia de museus em 2014 com o projeto 7.000 Museums: A Project for the Republic of India, uma instalação exposta no museu Bhau Daji Lad, em Mumbai. Para sensibilizar o visitante para a importância dos museus de arte, ele fez vitrines contendo, entre outros itens, fotografias de pessoas admirando obras. Também criou aquarelas retratando museus imaginários com arquitetura inspirada em museus de arte contemporânea ocidentais, visitados por indianos em trajes típicos.

A peça Farmers, de Ashim Purkayastha (1967–) é formada por selos postais nos quais o artista interferiu com tinta. Purkayastha frequentemente usa selos em seus trabalhos que discutem representações iconográficas. Dele também é a instalação Shelter, que reúne pedaços de tijolos, pedra e mármore embrulhados em papel de arroz e pintados com imagens ligadas às ruas onde os fragmentos foram encontrados, uma referência aos trabalhadores migrantes e a sua instável ideia de casa.

Diferente dos outros artistas no pavilhão, Purkayastha confronta o legado de Gandhi. Desde 2002, ele desenvolve a série Gandhi Man without Specs (Gandhi Homem sem Óculos) que aponta a falta de visão do líder em algumas questões, trabalho pelo qual já foi acusado de “zombaria” iconográfica. O artista defende o seu direito, aliás o direito de todos os indianos, de questionar as ideias de Gandhi, frequentemente envolvido em controvérsias, apesar de sua imagem quase uniformemente positiva no mundo ocidental. De fato, em textos que escreveu no início de sua carreira quando vivia na África do Sul, Gandhi fez comentários racistas; como protesto contra suas declarações ofensivas sobre os africanos, uma estátua de Gandhi foi removida do campus da Universidade de Ghana em Accra em dezembro de 2018, apenas alguns meses antes da abertura da Bienal.

Outra instalação feita com materiais e métodos de produção tradicionais é Naavu (We Together), de G. R. Iranna (1970–), originalmente montada em 2012. Trata-se de uma coleção de pandukas, chinelos simples feitos de madeira similares aos que Gandhi usava como parte de sua decisão de evitar o couro, presas à parede de forma a sugerir um grupo de pessoas caminhando. A obra faz referência à Marcha Dandi (ou Marcha do Sal), um protesto não-violento liderado por Gandhi em 1930 contra o poder imperial inglês. Iranna, que considera o objeto um símbolo de paz, coletou as pandukas em diferentes pontos do país e as identificou individualmente com um pequeno adereço, gesto que procura dar uma identidade única a objetos comuns.

Em um quarto separado estava a instalação Fragments (1993), da artista conceitual Rummana Hussain (1952-1999). A obra reúne pedaços de cerâmica, tijolos, pigmento e objetos de metal fabricados pela artista, às vezes posicionados sobre espelhos e fontes de luz que projetam sombras na parede. Hussain começou sua carreira com obras figurativas, mas mudou sua prática depois que um conflito entre muçulmanos e hindus em Ayodhya levou à demolição da mesquita Babri Masjid em 1992. A peça exposta mostrava o início da mudança no seu trabalho, que a partir de então assumiu uma posição política claramente engajada e adotou mídias como vídeo, performance e instalações.

A obra que mais me impressionou no pavilhão foi Of Bodies, Armor and Cages (2010-2012), de Shakuntala Kulkarni (1950–). Combinando performance, escultura e fotografia, trata do risco que as mulheres encontram cotidianamente no espaço público. A peça é formada por esculturas em rattan, um material tradicional, moldadas como vestidos, armaduras e joias, destacando, como outras no pavilhão, a importância do trabalho manual. Kulkarni vestiu as peças e registrou sua caminhada por Mumbai em fotografias; estas imagens estão expostas junto às esculturas. A artista, que trabalha com pintura, instalações, performance e vídeo, tem abordado há duas décadas a constante ameaça de violência que restringe o espaço que a mulher ocupa. Como o título explicita, Of Bodies se refere à ambiguidade entre proteção e prisão e à semelhança entre a armadura e a cela (ou gaiola). Por outro lado, ela observa no texto do catálogo que estas “gaiolas” são também vestimentas magníficas, e aponta para a tênue linha que separa a vulnerabilidade e o poder representados pelas armaduras, ao mesmo tempo ferramentas de proteção e de ataque.

Outra obra impactante era a vídeo-instalação Covering Letter (2012) de Jitish Kallat (1974–). Também exposta em uma sala separada, a obra diferiu dos outros trabalhos no pavilhão por não usar materiais tradicionais. O artista foi inspirado pela carta, que o artista viu no Museu Gandhi em Mumbai, enviada pelo Mahatma a Hitler três semanas antes da invasão da Polônia em 1939. No texto, Gandhi pede ao líder alemão – que ele chama de “amigo” – para evitar uma guerra que, em suas palavras, poderia “reduzir a humanidade a uma condição selvagem”. Kallat projetou a breve carta em uma “tela” de vapor que se desfazia quando o visitante a atravessava para logo em seguida refazer-se, sugerindo ao mesmo tempo a fragilidade e a resiliência da ideia da paz. Kallat é conhecido por seu trabalho com palavras de figuras influentes, como o discurso que o Primeiro Ministro Pandit Jawaharlal Nehru fez durante a comemoração da independência da Índia em 14 de agosto de 1947, tão sonhada por Gandhi.

Para quem, como eu, conhece pouco sobre a história e cultura indianas, a escolha de Gandhi como tema para o pavilhão do país parece uma decisão pouco arriscada. Como disse a jornalista indiana Anindita Ghose, Gandhi é o trunfo da Índia (2). Como brasileira constantemente chocada com os arroubos descontrolados de nossos políticos, senti alívio ao encontrar um líder que se posicionou contra uma situação opressiva de forma não violenta. No entanto, a escolha de Gandhi não agradou a todos. Um curador que não quis ser identificado disse a Ghose que a escolha do Mahatma neste momento como símbolo da nação era “ridícula”, mas não é possível saber ao que se referia exatamente; talvez falasse das posições polêmicas do atual Primeiro Ministro Narendra Modi. Aparajita Jain, co-diretor da galeria Nature Morte (Delhi) disse à Ghose que, apesar de satisfeito com a escolha de Gandhi e sua mensagem de paz, gostaria que as obras escolhidas não representassem o líder de forma tão evidente, mas evocassem os valores pelos quais ele lutou. Não concordo com o comentário. Em primeiro lugar, não havia uma única obra que ilustrasse a figura de Gandhi; além disso, enquanto algumas se referiam diretamente a suas ações e práticas como as pandukas de Iranna e a carta de Jillat, este não era o caso com as armaduras de Kulkarni ou os fragmentos de Hussain. Mais ainda, apenas alguém com conhecimento prévio sobre a história da arte indiana identificaria a ligação de Bose e Dodiya com Gandhi, conexões que escapavam à maior parte dos visitantes do pavilhão.

Como acontece com grande parte dos países participantes da Bienal de Veneza, inclusive o Brasil, a Índia está longe de fazer parte do cânone da arte moderna e contemporânea internacional. Além disso, o tamanho da Bienal faz com que os visitantes passem pouco tempo em cada pavilhão: esta não é uma ocasião de contemplação profunda. Por estes e outros motivos, referências à cultura e história locais não são sempre compreendidas e é difícil entender trabalhos sutilmente críticos como o de Purkayastha. Este problema poderia ser parcialmente sanado pelo material de apoio, como o catálogo distribuído no pavilhão, no entanto a maioria dos textos ali reproduzidos foi retirada de fontes originalmente criadas para outras ocasiões e que por isso pouco informam o visitante casual da Bienal. O catálogo foi o único aspecto do pavilhão que me pareceu improvisado – mas ainda assim o material da Índia era mais robusto do que as publicações disponibilizadas pela maioria dos outros países. De qualquer forma, de maneira geral o pavilhão indiano realmente funcionou como um grande proponente da arte moderna e contemporânea do país. Foi uma proposta curatorial com um tema definido e bem executado, reunindo trabalhos criados desde o período em que Gandhi estava vivo até mais recentes. Apresentou uma certa diversidade de perspectivas ao incluir artistas positivamente influenciados pelo líder e um, Purkayastha, que lhe é crítico. Foi com satisfação que descobri mais sobre a pouco conhecida produção artística deste país fascinante.

notas

1
Exposição Our Time for a Future Caring, curadora Roobina Karode, Pavilhão da Índia. 58ª Bienal de Veneza, curador geral Ralph Rugoff, de 11 de maio a 24 nov. 2019.

2
GHOSE, Anindita. Gandhi, Guernica, and an Indian pavillion at the Venice Bienale. LiveMint, 9 mar. 2019 <https://bit.ly/320omAF>.

sobre a autora

Mariana W. von Hartenthal é mestre em Museologia pela University of Southampton (UK) e doutora em História da Arte pela SMU (EUA).

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