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SEGAWA, Hugo. Um inglês nos trópicos: o Jardim América. Resenhas Online, São Paulo, ano 01, n. 004.01, Vitruvius, abr. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.004/3244.>.


O arquiteto e urbanista Barry Parker (1867-1941) não é sequer um nome de rua na cidade de São Paulo. Mas sua responsabilidade na configuração de um dos mais estimados bairros da maior metrópole sul-americana foi fundamental. Quando se fala em “jardins” na capital paulista, evoca-se uma região cheia de glamour, de sofisticação, de luxo. Claro que a elástica geografia da especulação imobiliária estendeu os “jardins” para além dos limites originalmente estabelecidos. Nem todo bairro-jardim tem a ver com Parker, mas Parker tem muito a ver com todos os bairros-jardins. Foi ele, associado com Raymond Unwin (1863-1940) que, no começo do século passado, deram forma concreta às teorias do conterrâneo britânico Sir Ebenezer Howard (1850-1928), idealizador de uma proposta de cidade – as cidades-jardins – baseada na conciliação entre o ambiente campestre e o urbano, numa concepção não isenta de dimensões utópicas e sociais, rebento das transformações advindas da Revolução Industrial na Inglaterra. Parker pode não ser nome de rua, mas consta de qualquer dicionário de arquitetura e urbanismo do mundo.

A lendária presença de Barry Parker no Brasil mereceu um alentado estudo: a tese de doutoramento da arquiteta Sílvia Ferreira Santos Wolff, defendida na Faculdade e Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, ora publicada sob o título Jardim América. Ela faz par com outra tese apresentada quase na mesma época, do arquiteto Carlos Roberto Monteiro de Andrade, dedicada a Parker – que ainda está a merecer uma edição condigna, perfazendo o panorama de pesquisa sobre a influência do modelo das cidades-jardins no Brasil pelas mãos de seus principais criadores. Ambos consultaram os preciosos arquivos da Companhia City, empresa constituída em 1911 por investidores europeus e brasileiros, atentos aos vaticínios do crescimento urbano de São Paulo patrocinado pela riqueza do café. A City foi a empreendedora de bairros exemplares como o Alto da Lapa (1921), Pacaembu (1925), Alto de Pinheiros (1925), Butantã (1935) e o bairro pioneiro, o Jardim América, objeto específico do estudo de Sílvia Wolff.

O livro pode ser dividido em duas partes. A autora em sua primeira metade se dedicou a esmiuçar a dimensão urbanística do bairro e logrou delinear um bom quadro sobre a inovadora experiência do urbanismo das cidades-jardins, suas derivações e sua arquitetura no mundo anglo-saxônico, antes de descortinar a especificidade paulistana. Ao localizar no panorama da ocupação territorial as primeiras urbanizações da elite local – Campos Elíseos, Higienópolis e Avenida Paulista – e relativizá-las frente aos códigos de posturas urbanas e legislações da época, a pesquisadora ressaltou o quanto inovadoras, progressivas e perenes foram as propostas de Barry Parker elaboradas na segunda década do século 20. O arquiteto britânico trabalhou durante dois anos em São Paulo, a serviço da Companhia City. Trechos do inédito relatório final deixado por ele, agora trazido à luz por Sílvia Wolff, são eloqüentes demonstrações das novas atitudes introduzidas pela City: “é fácil vender terras agora, levar a cabo um trabalho de construção comum e desenvolvimento pouco imaginoso, de forma a representar um retorno imediato, mas na verdade acarretaria perdas no final”. Noutra parte Parker comentava: “em minha primeira visita ao Jardim América eu percebi que seu poder de atração para moradores teria que ser em grande parte o de uma atração criada. Com isso eu quero dizer que a falência ou o sucesso dependem em um grau excepcional do projeto, planejamento e gerenciamento e do tipo de casa e de morador escolhidos”. Estas palavras foram escritas em 1919. Parker foi o responsável direto por consubstanciar um padrão urbanístico, paisagístico e arquitetônico consoante o modelo das cidades/subúrbios-jardins – dos quais foi um dos instauradores – captando as peculiaridades da cultura local para a elaboração de estratégias. A “atração criada” foi propor uma diferenciada integração entre cidade, arquitetura, paisagem e natureza: um pitoresco ambiente de ruas sinuosas, arborizadas, casas “ilhadas” em meio à vegetação e o público e o privado dissimulados na continuidade entre ruas e jardins demarcada por discretas cercas vivas de pouca altura. A “atração criada” também foi um inteligente modelo de financiamento, gestão empresarial, estratégia de comercialização e visão a longo prazo pela valorização futura do bairro. Idílico “bairro perfeito” nas bens elaboradas peças publicitárias estampadas em jornais e revistas da época, produzindo uma imagem pública de seriedade e rigor, vendendo conforto, salubridade, qualidade urbana, escrupulosamente controlados pelo empreendedor com normas urbanísticas e construtivas mais severas que as próprias exigências da municipalidade. Tal rigor, que perpassou as muitas mudanças de legislações e inevitáveis transformações urbanas nas últimas oito décadas, foi o que assegurou quase que milagrosamente uma inusitada mancha orgânica na geométrica e dura aerofotogrametria do coração da metrópole.

A outra metade do livro está dedicada à arquitetura das casas do bairro. Sílvia Wolff esquadrinhou os esquemas de implantação, as tipologias de plantas, as soluções espaciais típicas, as referências formais na arquitetura local, os pendores estilísticos dominantes na época e a contribuição dos ingleses, examinando as propostas residenciais de Parker e seus colegas vinculados ao empreendimento. Ao buscar esquematizar uma trajetória das moradias do bairro, a autora detectou os valores estéticos vigorantes, a renovação dos gostos arquitetônicos, as mudanças sobrevindas na funcionalidade e na exaltação de símbolos de distinção, como o automóvel e a garagem. Análises que se fundamentaram numa amostragem específica de exemplares arquitetônicos, mas, diante da circunstância modelar da experiência que foi o Jardim América, iluminam um conjunto das transformações do espaço residencial da elite paulista dos anos 1910 a 1950, caracterizando as vicissitudes de um período na arquitetura de São Paulo. A pesquisadora nos apresenta também um cuidadoso arrolamento dos arquitetos, engenheiros e construtores constantes nos arquivos da Companhia City. Um precioso mapeamento que nos sugere um “quem é quem” da construção naqueles momentos. Entre profissionais reconhecidos (Victor Dubugras, Carlos Ekman), outros quase esquecidos (Walter Brune, Rudolf Kolde, Álvaro Botelho, Dacio A. de Moraes, Elisiário Bahiana) e futuros modernos e modernos de todas as matizes (Jacques Pillon, Rino Levi, Gregori Warchavchik, Oswaldo Bratke, Eduardo Kneese de Mello, Francisco Beck, Lukjan Korngold, Vilanova Artigas) e centenas de inclassificáveis, há um potencial panorama de tendências que Sílvia Wolff oferece para futuros estudos. Examinando a valiosa amostragem de realizações no bairro, a autora demonstrou que o panfletário e modernista Warchavchik do final dos anos 1920 se tornou nos anos 30 e 40 um “vanguardista apaziguado e conciliador, quando não rendido aos desejos fantasiosos da clientela” como bem observou a pesquisadora.

O Jardim América ainda preserva parcialmente aquele charme harmonioso da natureza verdejante assediando arquiteturas hoje reconhecidas como parte de muitas histórias. E assim se manteve menos por se tratar de uma área legalmente protegida pelo tombamento estadual desde 1986 que pelo visionarismo de seus empreendedores. Enormes placas de administradoras quase que tamponam a vista de muitas casas à venda ou por alugar, evidenciando a perda da vocação de um bem-nascido bairro. Mas isto em nada macula as palavras no relatório datado do dia do aniversário da cidade de São Paulo, em 1919. Nele Barry Parker, despedindo-se do país, escrevia que partia “com a agradável sensação de olhar para trás com satisfação pelo trabalho realizado”.

[texto originalmente publicado no Jornal de Resenhas, Discurso Editorial / Usp / Unesp / Folha de São Paulo, nº 83, 9 março, São Paulo SP, p 5. Reprodução proibida]

[leia também "Jardim América: a arquitetura do primeiro bairro-jardim de São Paulo", de Carlos Roberto Monteiro de Andrade, sobre o livro de Sílvia Ferreira Santos Wolff]

sobre o autor

Hugo Segawa é arquiteto, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo

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