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CUNHA, Claudia dos Reis e. Restauração: método e projeto. Resenhas Online, São Paulo, ano 06, n. 069.03, Vitruvius, set. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/06.069/3104>.


O ano de 2007 marca os 70 anos de criação do primeiro órgão brasileiro responsável por garantir os meios para a preservação de nosso patrimônio cultural. Em 30 de novembro de 1937, com o decreto-lei nº 25 assinado por Vargas, fica criado o então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.

Mas o SPHAN certamente não foi apenas mais um órgão da burocracia estatal. Ao contrário, a idéia que vinha alimentando sua implementação no Brasil contava já com algumas décadas de discussões e um processo de amadurecimento que a fez escapar das garras de um culto cívico ao passado, de tradição nobiliárquica, para se fundar na necessidade de um (re)conhecimento do passado com vistas a forjar um novo (e, acreditava-se, melhor) futuro. O frescor do ideário modernista, com tudo aquilo que tinha de inovador e também de contraditório, está seguramente na base da idéia de patrimônio e de preservação que se constituiu no Brasil.

A compreensão aprofundada dos alicerces sobre os quais se desenvolveram as ações primeiras de preservação do patrimônio brasileiro são certamente fundamentais para o entendimento de sua realidade atual e de suas possibilidades e limites nas ações futuras. Alguns importantes trabalhos foram produzidos com esse objetivo: o de avaliar o momento fundacional do Patrimônio Nacional, traçando um interessante panorama das escolhas efetuadas e de suas conseqüências na conformação de um corpus patrimonial em território brasileiro (1).

O livro de Cristiane Gonçalves, fruto de sua dissertação de mestrado (2), recentemente publicado, também se debruça sobre esse primeiro momento de ação institucional (1939-1975), porém com um outro viés: seu trabalho se volta não tanto para quais objetos seriam preserváveis, mas fundamentalmente para qual o tratamento dado através das intervenções de restauro àqueles objetos já “eleitos”, isto é, tombados. Se as escolhas efetuadas pelos técnicos do SPHAN dizem muito a respeito de qual passado desejaram deixar em herança às gerações futuras, as formas como esses monumentos nacionais nos chegaram após as restaurações empreendidas por esses mesmos técnicos são igualmente sintomáticas.

A expansão das práticas patrimoniais verificada nesses últimos decênios trouxe consigo uma naturalização dos fazeres, os quais acabaram por se descolar das reflexões teóricas desenvolvidas dentro do campo disciplinar, correndo à margem ou mesmo na total ignorância deste. De um caminhar em paralelo, passa-se a uma relação estanque entre aqueles que se dedicam ao estudo e às reflexões teóricas sobre a restauração e aqueles que estão no campo da atuação prática sobre os monumentos. Os debates que corriqueiramente são feitos se concentram nas questões de natureza técnica e operativa, transcurando completamente a necessidade de – um passo antes – discutir quais os fundamentos que sustentam este operar, empobrecendo e esvaziando a esfera prática de seu real sentido cultural.

De fato, há atualmente no Brasil uma grande preocupação com a preservação do patrimônio cultural, entretanto, pouca atenção tem sido dispensada aos métodos de intervenção aplicados sobre esses bens escolhidos como memória a ser preservada. Percebe-se um grande descompasso entre as discussões a respeito da necessidade de se preservar a memória em suas diferentes formas e manifestações e os meios operacionais que deveriam ser postos para o cumprimento de tal tarefa. Contudo, tanto quanto o “o quê se preserva”, o “como se preserva” é fator de extrema importância, pois o produto final da intervenção será quase sempre a imagem cristalizada nas memórias da comunidade que deve se (re)apropriar do bem restaurado. Nesse sentido, dentre as quatro obras de restauração analisadas por Cristiane Gonçalves em seu livro, o exemplo da intervenção na antiga Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia é talvez o mais ilustrativo (p. 135-158).

A ameaça de demolição mobiliza a população local, que reivindica a recuperação desta edificação, cuja forte presença urbana suplanta seu aspecto em nada monumental. Desejosos de instalar ali um museu municipal, uma comissão local solicita a vistoria dos técnicos do Patrimônio, os quais até o momento nenhum tipo de interesse haviam demonstrado em relação a este edifício. No entanto, após a vistoria, o chefe da regional paulista do IPHAN, Luis Saia, declara a possibilidade de recuperação e o interesse no tombamento da antiga Casa de Câmara Cadeia.

Inscrita no livro de tombo histórico do Patrimônio Nacional, em 1955, segundo parecer de Edgard Jacintho, além de seu valor de exemplar típico das casas de câmara e cadeia da primeira metade do século XIX, destacava-se a “integridade nas linhas principais do partido” e o “bom estado de conservação no exterior”, o que justificaria seu tombamento como monumento nacional (p. 137). Tal leitura da obra diverge da posição adotada por Luis Saia, para o qual a aparência assumida pela edificação era na realidade fruto de uma descaracterização após sucessivas reformas pelas quais teria passado. Em sua análise, Saia não a classifica dentro da tipologia casas de câmara e cadeia, como o faz Jacintho, mas em relação a um outro modelo: o da arquitetura tradicional (entenda-se colonial) paulista. Isto o leva a uma completa transfiguração do monumento através da restauração por ele conduzida, pois:

“ao invés das prospecções arquitetônicas guiarem as formulações de restauro, Luis Saia, ao contrário, direciona as investigações prospectivas a partir do fio condutor de suas proposições, previamente elaboradas, alterando, assim, a seqüência lógica da metodologia própria ao restauro de edificações” (p. 145).

Contraditoriamente, apesar de o tombamento ter se dado em nome do valor histórico da edificação, a restauração – em grande medida dada a “inversão metodológica” de Saia – anulou essa historicidade, inventando um monumento que nunca existiu.

Certamente, dentre os exemplos apresentados, o restauro da antiga Câmara e Cadeia de Atibaia apresenta da forma mais bem acabada os graves prejuízos ao patrimônio cultural e, consequentemente, à memória de uma dada comunidade, que a ausência ou “confusão” nos procedimentos metodológicos podem acarretar em uma restauração. Mas também com os outros estudos de caso – igreja de São Miguel Paulista, casa-sede e capela do Sítio Santo Antônio e Fazenda Pau D’Alho –, a autora apresenta aspectos muitos interessantes para reflexão. Serão destacados aqui dois pontos em especial. Um primeiro se refere à proximidade entre os procedimentos de restauração adotados pelos técnicos do SPHAN em terras paulistas e aqueles adotados pelo restaurador francês Viollet-le-Duc (3). O outro ponto de grande relevância trazido pelo trabalho de Cristiane é a questão do projeto de restauro.

Nas quatro intervenções analisadas pela autora fica patente o movimento de classificar os monumentos, enquadrando-os em modelos previamente determinados – bem ao gosto positivista de Viollet-le-Duc (p. 187-189). Não apenas Luis Saia, mas o corpo técnico do IPHAN de modo geral, nessas primeiras décadas de atuação ignorava a máxima de que, em restauro, cada caso é um caso, pois cada bem cultural é único em sua configuração e devir no tempo. Prevaleciam as teses sobre os desenvolvimentos da arquitetura brasileira nos diferentes ciclos econômicos a informar a condução dos trabalhos, tanto em relação ao que deveria ou não ser preservado, quanto em relação à forma mais adequada de fazê-lo. Frise-se ainda que tais teses foram sendo construídas paralelamente aos trabalhos iniciais de inventário, tombamento e restauração e, em muitos casos, pelos mesmos técnicos do SPHAN.

No tratamento dispensado a cada monumento visava-se alcançar uma idealizada unidade estilística, estabelecida a partir de modelos abstratos previamente determinados. Se a idéia de diferenciar a intervenção recente da matéria original já estava presente desde as primeiras restaurações empreendidas, principalmente através do uso do concreto nos reforços estruturais ou reconstrução de partes ruídas (4), esta distingüibilidade acabava mascarada pela uniformização no tratamento das fachadas, que garantiam a unidade do conjunto (p. 196).

A unidade estilística, como coloca a autora, é uma “idéia [que] atravessa os trabalhos apresentados com tal vigor que é quase impossível não observá-la nos resultados obtidos, sendo inevitável associá-la aos propósitos finais das restaurações, bem como aos processos que levaram até as soluções alcançadas, nos quatro casos analisados...” (p. 186). No entanto, tais propósitos não estavam claramente expressos num projeto de restauro, o que conduz ao segundo ponto a ser destacado no trabalho de Cristiane Gonçalves.

Buscando estabelecer um roteiro comum de análise para as quatro intervenções escolhidas, a autora define três etapas metodológicas a serem verificadas em cada caso: a de levantamento, a analítica e a de projeto (p. 61). As etapas de levantamento e analítica contemplam as pesquisas de dados históricos e iconográficos, levantamentos métrico-arquitetônicos, gráficos e fotográficos e prospecções, visando à obtenção de um instrumental para a análise das condições atuais da obra, bem como sua importância histórica e simbólica. Todos esses procedimentos preliminares, sistematizados num projeto de restauro, devem anteceder a etapa executiva, que engloba o projeto, o plano de obras e a execução.

A autora traz como resultado de sua atenta leitura do material encontrado na sede paulista e no arquivo central do IPHAN a constatação que as etapas de levantamento e análise do monumento se davam concomitantemente às obras, inexistindo nos quatro casos estudados um projeto de restauro que desse conta de quais procedimentos e qual partido seriam adotados na etapa executiva dos trabalhos (p. 72; 85). Se de um lado, já a partir da intervenção inaugural na igreja de São Miguel Paulista procurou-se o estabelecimento de critérios rigorosos de atuação, ficam patentes as inúmeras lacunas deixadas nas pesquisas documentais e históricas (p. 72; 115; 143; 168), bem como sua sistematização num projeto de restauro.

Cristiane coloca a necessidade de o pesquisador trabalhar não apenas com aquilo que “fala” a documentação, mas também com seus silêncios e omissões.

Logo no início do livro, a autora alerta para a importância do projeto como modo de antever os resultados a se alcançar com a intervenção (p. 19), destacando o papel fundamental que o arquiteto deve(ria) assumir como agente da ação preservacionista. No entanto, ao longo das páginas que vêm a seguir, o que Cristiane deixa claro é a ausência de projetos de restauro que estabelecessem – previamente às intervenções – o que foi feito. Orçamentos e planos de obras sucintos, somados a croquis, substituíam o projeto, fator que dificulta o dimensionamento do que realmente foi feito e sua avaliação posterior. Este ponto é fundamental pois a situação atual, passadas quase sete décadas da restauração da igreja de São Miguel, não é muito diferente: levantamentos históricos e iconográficos, assim como os projetos de restauro (quando existem), são relegados ao cumprimento de etapas burocráticas previstas pelos órgãos preservacionistas e não fruto de uma reflexão conscienciosa sobre a forma mais adequada de se transmitir “as obras monumentais de cada povo [...] na plenitude de sua autenticidade” (5).

Grandes obras (autodenominadas) de restauração são feitas com objetivo, salvo raras exceções, de responderem a demandas pragmáticas de uso e valorização econômica, além de servirem à promoção política, dado seu caráter quase sempre de “restaurações-evento”. Ademais, tais ações geralmente são implementadas em prazos exíguos e, portanto, de modo superficial e descuidado, acarretando perdas irreparáveis aos monumentos que justamente deveriam conservar. Os novos usos, ao invés de garantirem a preservação das memórias inscritas nos edifícios, se impõem sobre estes, muitas vezes desrespeitando suas características e especificidades técnico-construtivas, fazendo-os meros invólucros para as atividades que ali se desenvolvem (6).

A noção equivocada ou a total ignorância do que venha a ser restauro, quase sempre entendido como ação que visa o retorno ao estado originário da obra ou como simples consolidação acrítica de uma determinada condição desta, está certamente na raiz da baixa qualidade das intervenções que são empreendidas sobre bens patrimoniais na atualidade e, conseqüentemente, na sistemática perda dos valores que lhes eram inerentes e em razão dos quais esses monumentos foram conservados. Nesse sentido, a publicação deste trabalho é bastante oportuna e trata de temas que permanecem extremamente atuais.

A reavaliação dos trabalhos iniciais de restauração de monumentos no Brasil e especificamente em São Paulo, como afirma Maria Lucia Bressan Pinheiro na apresentação do livro, é um “importante instrumento de reflexão sobre experiências que, não obstante parecerem muito distantes no tempo, consagraram uma abordagem que encontra até hoje muita ressonância nos meios patrimoniais” (p. 15), todavia, sem as escusas da ausência de lastro ou de exemplos anteriores, como nas intervenções pioneiras da primeira geração do SPHAN.

notas

1
Dentre esses trabalhos deve-se destacar: ANDRADE, Antonio Luiz Dias de. Um Estado completo que pode jamais ter existido. São Paulo, FAU/USP, Tese de Doutorado, 1993; FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em Processo. Rio de Janeiro, UFRJ / IPHAN, 1997; RUBINO, Silvana. As fachadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1937-1968. Campinas/SP, IFCH/UNICAMP, Dissertação de Mestrado, 1991; SANTOS, Mariza Veloso Motta. O tecido do tempo: a idéia de patrimônio cultural no Brasil, 1920-1970. Brasília, UnB, Tese de Doutorado, 1992.

2
GONÇALVES, Cristiane Souza. Metodologia para a Restauração Arquitetônica. A experiência do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em São Paulo, 1937-1975. São Paulo, FAU/USP, Dissertação de Mestrado, 2004.

3
Viollet-le-Duc (1814-1879) é uma figura de incontestável importância no campo da restauração, tendo atuado num momento em que esta se firmava como ciência e como campo disciplinar autônomo. Tanto através das diversas obras de restauro por ele empreendidas quanto em seus escritos, o arquiteto preconizava que, como documento, cada monumento a ser restaurado, deveria ser pormenorizadamente analisado e estudado antes de qualquer intervenção. Esse conhecimento aprofundado sobre o monumento daria então ao arquiteto-restaurador instrumentos para compreender a concepção original do projeto, e daí, a autoridade para intervir. E era munido dessa autoridade que Viollet-le-Duc agia nas restaurações de que era encarregado, em ações francamente intervencionistas. A análise precisa e rigorosa, como nos estudos científicos, daria ao restaurador respostas unívocas e inquestionáveis, não apenas sobre qual o estado real da obra, mas a respeito da intenção do construtor primitivo, dessa maneira – acreditava Viollet-le-Duc – ao restaurador caberia apenas revelar o “estado completo que pode jamais ter existido nunca em um dado momento” (VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 29).

4
Seguindo os princípios indicados pela Carta de Atenas, de 1931, que sugere a utilização de “todos os recursos da técnica moderna e especialmente do cimento armado” nas reintegrações e consolidações (Carta de Atenas – Escritório internacional dos museus, in: Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro, IPHAN, 2000, p. 15. Disponível em www.vitruvius.com.br/documento/patrimonio/patrimonio01.asp).

5
Carta de Veneza, in: Cartas Patrimoniais, op. cit, p. 91. Disponível em www.vitruvius.com.br/documento/patrimonio/patrimonio05.asp.

6
Contrariando as indicações da Carta de Veneza, que diz: “A conservação dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil à sociedade; tal destinação é, portanto, desejável, mas não pode nem deve alterar a disposição ou a decoração dos edifícios. É somente dentro desses limites que se devem conceber e se podem autorizar as modificações exigidas pela evolução dos usos e costumes” (Carta de Veneza, in: Cartas Patrimoniais, op. cit., p. 93. Disponível em www.vitruvius.com.br/documento/patrimonio/patrimonio05.asp).

sobre o autor

Claudia dos Reis e Cunha, arquiteta e especialista em História e Cultura pela Universidade Metodista de Piracicaba, mestre e doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na FAU-USP, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq

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